"A ciência pode não desembocar em uma atividade tecnológica. E o que então podemos esperar dos cientistas?" Mário Novello é cosmólogo e integrante do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica. Artigo publicado em "O Globo":
O crescimento quantitativo, nos últimos vinte anos, da atividade em ciência e tecnologia produziu um avanço notável que está catapultando a atividade cientifica brasileira em nível internacional, impondo uma reflexão sobre o futuro da organização da ciência em nosso pais. Um dos grandes desafios que temos pela frente é a relação, desnecessariamente conflituosa, entre atividade cientifica e tecnológica.
É então que aparece a questão: a pesquisa cientifica deve depender institucionalmente de um objetivo tecnológico? É para exercer uma dominação no mundo que o cientista se debruça sobre a natureza e inventa suas leis e teorias? A longo prazo, atrelando ciência à tecnologia, o diálogo com a natureza se perde.
O sistema de C&T estará então a serviço de uma sociedade cujas consequências nefastas - como no exemplo do desequilíbrio ecológico denunciado há décadas - estão começando a se fazer sentir. É esse o momento em que somos chamados a refletir sobre o caminho a seguir.
Argumenta-se que, no caso da ciência - devido à sua universalidade e a seus métodos de atuação -, não há opção. Uma sentença desqualificante pretende exemplificar essa posição: não podemos (re)inventar a roda, dizem. O procedimento de fazer ciência seria único e qualquer alternativa seria um trabalho inútil, insignificante e fadado ao fracasso.
Assim, dever-se-ia copiar o modelo americano de fazer ciência. Não somente por suas consequências práticas visíveis - identificadas com sinais exteriores de sucesso, como, por exemplo, o grande número de prêmios (Nobel e outros) -, como também pela inexorabilidade histórica de que não há alternativa viável em um mundo que se organiza de modo cada vez mais completamente regido por um sistema de poder único, global, altamente fascinante, mas corrosivo.
O cientista ítalo-americano Vitório Canuto, ao comentar essa questão, declarou, referindo-se aos EUA: "Este não é um pais metafísico", querendo se referir aos aspectos práticos, tecnológicos, que norteiam o sistema de ciência e tecnologia daquele país. Os seguidores desse pensamento argumentam que a era atual de especialização torna aquela opção política americana inevitável.
Será mesmo? Nos anos 1930, Ortega y Gasset apontava já o afastamento cada vez maior do diálogo com a natureza devido à redução do saber científico a um conhecimento especializado, técnico, reducionista, não integrado.
Mas qual a razão dessa nossa análise aqui? Esclareçamos.
O MCT está promovendo a elaboração de um Plano Nacional de Astronomia. Uma das questões com que a comissão encarregada se deparou - e que não é restrita a esta área - envolve a interdependência entre serviços de natureza técnica e ciência fundamental.
Os centros de pesquisa cientifica, praticamente todos exclusivamente no sistema governamental, devem continuar suas atividades de ciência fundamental ou devem ser transfigurados em pólos de desenvolvimento tecnológico? Há, parece, uma opção política a ser feita.
E, no entanto, não me parece ser correta a formulação dessa dicotomia.
Ela não é inevitável, existe uma liberdade de escolha, há outros caminhos. E aqui não se trata de escolha individual, mas sim de uma atividade coletiva: a organização do sistema C&T. A ciência pode não desembocar em uma atividade tecnológica.
E o que então podemos esperar dos cientistas? Eu deixaria aqui esta questão aberta para que possamos refletir sobre ela. Mas acrescentaria um exemplo concreto de uma atividade científica aparentemente irrelevante em sua prática de dominação da natureza, mas que provoca uma profunda reflexão sobre nós mesmos, sobre a espécie humana.
A origem do universo talvez seja um dos maiores mistérios que a razão procura explicar. Durante quase 30 anos, a ciência da cosmologia trivializou essa questão, identificando o momento de extrema condensação pela qual passou o universo ao seu começo e produzindo, através do cenário "big bang", um mito de criação, acenando com a impossibilidade de produzir as causas racionais daquele ponto inicial. Estaria assim decretado o fim da maravilhosa caminhada da ciência, iniciada lá atrás por Copérnico, Kepler, Galileu e seus companheiros astrônomos.
E, no entanto, no interior desta ciência, surgiu uma reação a esta posição irracional, produzindo a análise para além daquele suposto inicio de tudo que existe, dando lugar ao modelo de um universo dinâmico e eterno. Os cosmólogos mostraram que não seria possível não haver alguma coisa: o Universo estava condenado a existir.
É esta matéria de reflexão e encantamento que devemos esperar que a ciência produza. (O Globo, 3/8)
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