Crianças pobres executam jovens para entrar em gangs

22 de maio de 2011  Correio da Paraíba | Cidade | PB Infância roubada pelas drogas, Daniel, 17 anos, viveu invisível 12 anos da sua vida, em um recanto do Brasil. Aos 13, teve seu 2º batismo. Desta vez, no tráfico. Eles dissero : Tu tem que matar esse boy aqui! Vai ser teu batismo no grupo da gente . Quando entrei na casa, vi aquele cara algemado, no chão, chorando e dizendo: Boy, num faça isso não, pelo amor de Deus! Eu tenho uma filha! Já tava muito doido, drogado. Lembro que disse pra ele: Quero saber de porra nenhuma, não! No começo, tive pena...quando ia desistir de matar ele, o caba disse: Apois, num serve pro grupo. A gente vai ter que te apagar . Aí, eu falei: Apois, é melhor ele do que eu . Peguei a arma da mão dele e dei dois tiros na cabeça do cara , revelou. Após isso, Daniel ganhou outro nome: Neguinho e foi ferrado como bicho, com uma tatuagem: um D , que significa Diabo. Uma marca para identificar membros do grupo Okaida , de João Pessoa (alusão à organização terrorista islâmica Al-Qaeda). Todos os dias, garotos como ele estreiam no mundo do tráfico. Como no resto do Brasil, na Paraíba, principalmente em cidades da Região Metropolitana da Capital, meninos são batizados dessa forma cruel. São crianças pobres executando meninos miseráveis, como passaporte para ingressarem em facções. A 2ª reportagem da Série Geração Perdida fala sobre o batismo no tráfico e conta histórias reais de meninos como Daniel, que vivem no limite entre a vida e a morte. Favelas viram campos de concentração Na Paraíba, algumas favelas de bairros na periferia de cidades como João Pessoa, Cabedelo, Bayeux, Santa Rita e Campina Grande, estão virando campos de concentração , onde os soldados são crianças e jovens, que matam e morrem servindo ao tráfico, à narcopátria . Na capital paraibana, meninos como Daniel, 17 anos, só se tornam visíveis para a sociedade quando são mortos, presos ou passam a desafiar a segurança pública apagando até outros garotos como eles. Daniel (nome trocado para preservar sua verdadeira identidade), nasceu em uma região conhecida como Terra sem Lei , no município pernambucano de Itambé, que faz divisa com a cidade de Pedras de Fogo, na Paraíba. Na área, há grupos armados com o envolvimento da própria polícia e qualquer conflito ou briga se resolve na bala. O garoto veio morar em João Pessoa para cumprir sua missão no tráfico. Meu batismo foi matar um boy. Me arrependo até hoje de ter entrado nessa vida , disse, com a voz embargada. Nesse momento, o garoto chorou. Após um momento de silêncio, continuou: Depois, esse negócio ficou martelando na minha cabeça. Bateu uma revolta! Pensei em me entregar pra polícia e dá uma de X-9, sair entregando todo o grupo. Mas se fizesse isso, ia morrer na cadeia, por causa de fulano e sicrano, que são policiais , contou. Ele disse então que teve que continuar nesse caminho. Até agora, que eu me lembro... apaguei uns 12. Mas tudo traficante safado. Queria parar, mas não consigo. Os cara tão me ameaçando direto. Tô jurado! Pra não morrer, eu mato! Por mim, apagava todo grupo, pra num vim atrás de mim. A lista é grande. Só aviãozinho no grupo, tinha uns 50 , revelou Daniel. Grana fácil: R$ 2 mil por mês Corpo franzino, Daniel começou a usar crack aos 12 anos, ainda em Itambé (PE). Disse que sua família não tinha condições de dar o que ele queria. Comecei a me entrosar nas festas, com os cara . E falaram: Tem um trabalho pra tu. Vai cair uma grana boa na tua mão, R$ 2 mil por mês. É grana fácil! , contou. Sua estreia como avião foi aos 13. Recebeu uma mochila. Eles dissero : Aqui, tem tudo o que vai precisar pra tu entrar no grupo da gente e cumprir sua missão . Havia duas pistolas 765, muita munição, R$ 5 mil em dinheiro, 100 quilos de crack...Era o kit inicial , afirmou, acrescentando que a maior parte da droga vem para a Grande João Pessoa de Natal (RN) e que cada grupo vai buscar sua mercadoria em dias, horários e locais diferentes, para evitar o flagrante da polícia. Segundo o garoto, as táticas nas bocas-de-fumo e pontos de venda de drogas são de guerra . Em ruas e becos sujos e escuros, eles vivem assustados e à espera do próximo tiro, para os condenados que infringirem às leis do tráfico. Cada território ou ponto é permanentemente vigiado por soldados como ele. A diferença desses campos minados é que as barreiras e muros são invisíveis. Mas esses meninos vivem presos dentro da própria realidade. Não ousam sair. Caso contrário, pagam com a própria vida. Em 2009, tentei me livrar novamente e falei pros cara : Quero sair dessa vida de droga, véi! Passei quase um ano sumido daqui. Fui pra Salvador (BA) e outros lugares. A única coisa que me garantia vivo era a arma que tinha na bolsa , contou Daniel. Jurado de morte Jurado de morte por gangs e facções do tráfico, o garoto Daniel já sofreu muitas ameaças. Disse que já foi ameaçado até por um policial federal. Não revelou de que Estado ele era. Num quero nem falar nisso. É muito perigoso , resumiu. No final de 2009, sofreu mais ameaças. Com a arma apontada para sua cabeça, o grupo deu 48 horas para que voltasse a trabalhar para a firma . Eu tava em Manaíra (João Pessoa). Parou um carro e me arrastou pra dentro. Me levaram pra o Bessa e dissero : a gente tá precisando dos seus serviços. Uns caras foram presos, outros mortos pela poliça ...entrou gente novata no grupo e você é o único que conhece as rotas pra Natal (RN). Ou vai fazer ou a gente vai te matar. Tá ligado que fulano é da federal e num tem boquinha não! Pra num morrer, tive que matar...fugi, voltei, pedi ajuda e acabei aceitando o negócio pra me livrar deles , relatou Daniel. Meu sonho era o Exército De família pobre, Daniel não brincava de polícia e bandido na sua infância. Vivia. Meu sonho era servir ao Exército. Mas num tive estudo pra isso , revelou o garoto, que só teve tempo de cursar até a 2ª série do ensino fundamental. A sua missão era outra, bem diferente. Trocou o lápis e o caderno pelas armas de verdade. O exército que ele serviu é outro: o do tráfico. Penso em fazer faculdade de Direito. Seria um sonho. Acho massa geral! Soube que tem uns trabalho difícil pra caramba e uns estágios também. Queria que essas parada de droga acabasse . Isso num é vida de ninguém. Aprendi que Deus vai me proteger daqui pra frente , concluiu o jovem. Executado pelo amigo No bairro São José, em João Pessoa, jovens pobres também se matam como batismo para ingressarem no tráfico. Perdi meu segundo filho, no mês passado. Foi assassinado com sete tiros. Ele usava um tal de mesclado (crack e maconha). Dizem que o cara matou meu filho pra entrar numa gang. Era a condição pra fazer parte do grupo, tinha que ter um homicídio. O que matou meu filho era colega dele, usavam drogas juntos. Ele disse que meu filho estava no lugar errado e na hora errada , revelou uma mãe de 47 anos, moradora da comunidade. Ela perdeu dois filhos de tiro, em menos de dois anos, na capital paraibana, de 20 e 14 anos. Seu nome foi preservado para sua segurança. Por hora, 4 pessoas morrem de tiro no País, diz pesquisa A cada hora, quatro pessoas morrem de tiro no País. O Mapa do Tráfico Ilícito de Armas no Brasil (2010) mostra que o País é campeão mundial em números absolutos de mortes por armas de fogo, com 34,3 mil homicídios por ano. O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do estudo Mapa da Violência 2011 Os Jovens do Brasil ressaltou que essa matança é resultado de uma cultura da violência , em que qualquer conflito se resolve com a morte. O Mapa do Tráfico Ilícito de Armas, divulgado em dezembro passado, pela organização não-governamental Viva Rio e pelo Ministério da Justiça, revela que existem 16 milhões de armas de fogo em circulação em todo o País. Dessas, 47,6% estão na ilegalidade (7,6 milhões) e 13% com o Estado brasileiro (2 milhões). Além do alto número de armas na ilegalidade, há uma grande facilidade de acesso a elas. Existem armas que se alugam e crianças e jovens podem comprar e matar. Um estudo coordenado pela pesquisadora Miriam Abramovay, em 12 capitais brasileiras, sobre violência na escola, revela que 35% dos alunos já pegaram em arma ou sabem como adquirir. Isso é muito grave , comentou o sociólogo Julio Jacobo. Juliano, um sobrevivente do tráfico Reencontrar vivo um jovem, ex-soldado do tráfico, após dois anos, é a prova de que esses meninos podem ter outro destino, além daquele de matar e morrer por essa narcopátria e tombar de tiro antes dos 20 anos. Juliano, 26 anos, é um sobrevivente do tráfico na Paraíba, a exceção da regra. Jovens como ele, que chegam até o cargo de gerente da firma , vivem diariamente entre a vida e a morte. A regra para rapazes como ele é não viver. Juliano contrariou as estatísticas. É um dos 20 sobreviventes do tráfico de um grupo de 200 jovens. Como mostrou a 1ª reportagem da série, no domingo passado, 7,1 mil homicídios foram registrados na Paraíba (de 1998 a 2008) e quase 40% das vítimas (2,6 mil) eram jovens de 15 a 24 anos e foram apagados do futuro, principalmente à bala. Há dois anos, a reportagem entrevistou Juliano na fazenda de nome Esperança , no município paraibano de Alhandra. O nome é adequado. O lugar é a prova de que há uma luz de esperança para os meninos do tráfico. Juliano escancarou sua vida, contou cenas tão reais, que causaram arrepio na equipe. Na noite da última terça-feira, a reportagem reencontrou o jovem em João Pessoa. Ele desfiou outros capítulos da sua vida. Diante de Juliano (nome dado a ele para preservar sua identidade), a voz embargou, a lágrima desceu. O roteiro da entrevista foi deletado da mente por alguns minutos. Aquele arsenal de perguntas acumulado durante dois anos, sumiu. Há mais de um ano, a reportagem tentava reencontrar o jovem. Acreditava que estava fora da Paraíba. Não sabia sequer se estava vivo. Reportagem Antes de perguntar algo, ouviu e ouviu o que ele tinha a dizer. Ter sua vida contada em uma reportagem especial de jornal, foi algo importante para ele. Você foi a primeira pessoa que ouviu minha história e se interessou por ela. Quando saí da fazenda, dei de cara, na rua, com um traficante, que me chamou para o negócio novamente. Desta vez, resisti. Por pouco, não morri. Mas outro dia, tive uma queda no crack. E pensei: Quantas pessoas leram minha história? Não posso decepcionar, mais uma vez, minha família e aquela menina que escreveu minha história! . Me senti um lixo , relatava Juliano. Ele contou que voltou à fazenda em busca da recuperação do vício. Fui um soldado no meio de duzentos como eu. Se tiver 20 vivo hoje, é muito. Escapei da morte mais de 60 vezes. Eu me recuperei e estou aqui, vivo! Vivo! , desabafou Juliano. Sabe o que significa isso? , indagou o jovem. Perplexa, a reportagem silenciou. Aquele jovem, anônimo no meio de um exército de milhares de soldados do tráfico, sentiu-se importante, um brasileiro com cara e nome. Meu pai era um traficante Criado pelos avós, Juliano abriu outros capítulos da sua história. Sou filho de um traficante. Mataram meu pai e botaram ele numa cova com maconha. Só descobri isso quando tinha 16 anos , revelou. Ele sofreu. Foi uma dor. Quando pensava no meu pai, queria me acabar na droga. Meu desejo era ter um pai que me levasse num campo de futebol e dissesse para os amigos: esse é o meu filho! Todo ano, sempre esperava minha mãe biológica no meu aniversário. Mas ela nunca veio , revelou, emocionado. Ele disse qual o seu sonho de infância. Queria ser bombeiro pra salvar quem tivesse morrendo. Mas esse sonho ainda está muito distante da minha vida , afirmou Juliano. Ele está trabalhando em uma feira livre de João Pessoa e frequenta um grupo de auto-ajuda, na Capital. Não conseguiu ser bombeiro. Mas com sua história, ajuda a salvar outros meninos do tráfico . Tem medo de decepcionar novamente as pessoas que ama. O amor foi algo que também conseguiu recuperar. Pois, o crack, segundo ele, também seca a alma. Em Cabedelo Na Vila Feliz, em Cabedelo, garotos pobres também matam e morrem pela sua narcopátria . Meu filho foi assassinado. Tinha só 11 anos e foi morto por outro menino da mesma idade, em dezembro passado. Nem acreditei. No outro dia, vi na TV a criança que matou meu menino. A dor não passa , revelou Maria, 37 anos, que terá a verdadeira identidade preservada. Tem dois filhos jurados, de 16 e 20 anos. O traficante chegou pra o boy de 11 anos que matou meu filho e disse: se eu te der uma arma, tu mata? O garoto aprendeu a atirar com ele e perguntou: agora posso matar quem eu quiser, o primeiro que ver na frente? O cara falou: não, mate quem tiver rixa . E ele matou meu pequeno. Minha filha presenciou o crime , relatou a mãe da infeliz Vila Feliz. Henriqueta Santiago