24 de julho de 2011 Educação e Ciências | Revista Época | Sociedade | BR Um jornalista americano conta em seu novo livro como se tornou campeão de memorização e mostra que, mesmo nestes tempos de celular e internet, todos podemos lembrar - mas nem sempre queremos Letícia Sorg Não faz muito tempo, conseguía-mos lembrar números de telefone. O da mãe, o do melhor amigo, e, quem diria, até o do parceiro. De uns anos para cá - desde a popularização do celular -, tal capacidade de lembrar sequências de oito dígitos ou mais caiu em desuso. Temos sorte se ainda guardamos na mente algum número da era pré-celular, mas é pouco provável que nos demos o trabalho de memorizar qualquer novo contato. E vivemos bem até o dia em que perdemos nosso aparelho - e nos sentimos paralisados. Para nós, seres dependentes do celular até para ligar para a própria casa, nada mais natural do que se espantar com um indivíduo capaz de decorar o nome e a aparência de uma centena de pessoas, a sequência de centenas de cartas de baralho ou uma extensa lista de números aleatórios. Seus feitos extraordinários nos fazem olhá-lo como se fosse uma espécie de mágico, vidente ou superdotado. E pensamos: o que essa pessoa tem que eu não tenho? O jornalista americano Joshua Foer, de 28 anos, fez essa pergunta quando, em 2005, assistiu ao Campeonato Americano de Memória para escrever uma reportagem. Perguntou para vários competidores como eles conseguiam lembrar tanta coisa e recebeu quase sempre a mesma resposta: "Qualquer um pode fazer isso!". Foer ficou ressabiado. Era esquecido, frequentemente não sabia onde havia deixado a chave do carro e tinha até dificuldade de lembrar a data de aniversário da namorada. Como poderia virar um elefante, assim, de uma hora para outra? "O campeonato de memória nos parece tão inacreditável porque estamos acostumados a não lembrar", diz Foer . "Dependemos tanto da tecnologia que não confiamos em nossa memória." Mas o jornalista decidiu testar a sua e narrar os resultados no livro A arte e a ciência de memorizar tudo: memórias de um campeão de memória (Nova Fronteira), que será lançado em agosto no Brasil. "Dependemos tanto da tecnologia que não confiamos na nossa memória" JOSHUA FOER, escritor americano Com a ajuda de um dos recordistas mundiais, o britânico Ed Cooke, Foer começou a exercitar sua memória uma hora por dia. E, para lembrar mais do que míseros números de telefone, recorreu a técnicas criadas quando, sem computador ou mesmo livros, as pessoas precisavam memorizar poemas extensos, discursos inteiros. Uma delas é o "palácio da memória", criado pelo grego Simônides no século VI antes de Cristo (leia mais no quadro abaixo). Usada para memorizar séries de elementos, a técnica exige que a pessoa "espalhe" os itens de que quer se lembrar por um lugar que lhe seja familiar, como a própria casa. De preferência, imaginando situações bem estapafúrdias para que eles estejam lá - o que aumenta a eficácia do exercício. Sem nenhum treinamento ou esforço, somos capazes de memorizar de cinco a nove elementos - na média, sete -, como sugeriram os estudos de George Miller, na década de 1950. Depois de um ano praticando, Foer conseguiu se lembrar de 107 nomes e sobrenomes de pessoas (e associá-los às fisionomias) e 87 dígitos. O desempenho lhe deu o título de campeão americano e um final apoteótico para seu livro, que deverá virar filme. Mas todo o esforço não o tornou menos esquecido. Pouco depois da competição, Foer foi a um jantar e voltou de metrô para casa - esquecendo que fora de carro. Teria ele perdido sua capacidade de lembrar? Não. Foer continuava tão bom quanto antes para memorizar cartas de baralho, sequência de números - entre as quais, sabiamente, a data de aniversário da namorada. Mas a memória não é uma espécie de músculo que, exercitado, torna-se forte para todas as tarefas. Não há uma técnica mágica que nos faça lembrar tudo - e nos liberte dos dados guardados em celulares, computadores e no bom e velho papel. Lembrar exige um esforço e uma disciplina que, muitas vezes, não estamos dispostos a despender. "Memorizar detalhes como números de telefone e de cartões de crédito, aniversários e a data exata de acontecimentos não é mais necessário", diz o psicólogo Anders Ericsson, professor da Universidade da Flórida, Estados Unidos, e um dos principais estudiosos da cognição humana. "Da mesma forma que o surgimento dos livros nos dispensou de ter de memorizar os textos sagrados, palavra por palavra." Tudo pode ser resumido ao grau de atenção que damos a algo. "Só lembramos aquilo a que prestamos atenção", afirma Ed Cooke. Isso significa que, se não fizermos um esforço consciente para notar uma informação, dificilmente vamos guardá-la na memória. É um desafio e tanto num mundo cada vez mais cheio de informações que disputam nossa atenção. Para tentar evitar as distrações, Foer treinava usando fones de ouvido e óculos pintados de preto, que barravam sua visão lateral. "Continuamos com a mesma capacidade de memorizar, mas me preocupa esse costume de fazer várias tarefas ao mesmo tempo", diz o psicólogo Alberto Dell'Isola, único brasileiro listado no ranking mundial de recordistas de memória. "Nosso cérebro não está preparado para isso e perdemos informações sem nem perceber. É o que acontece quando dirigimos falando ao celular: nem percebemos que demoramos a reagir à abertura do sinal." Como não vamos sair por aí com fones e cabresto, podemos ao menos tentar desligar os alertas de recebimento de e-mail e os programas de bate-papo se quisermos nos concentrar numa só tarefa. Mas isso não é garantia de foco. Na internet, cada informação pode levar a uma nova. São tantas as páginas que dificilmente nos fixamos a ponto de memorizar seu conteúdo. Quando sabemos que podemos voltar a qualquer momento para checar um dado, como no caso da navegação pela internet, ficamos menos preocupados em memorizar a informação em si e mais concentrados em saber como buscá-la novamente. Essa é a conclusão do estudo da psicóloga Betsy Sparrow, da Universidade Colúmbia, em Nova York, publicado na última edição da revista Science. Na pesquisa, Betsy afirma que, cada vez mais, vemos o Google e outros mecanismos de busca como uma extensão da própria memória. Isso não quer dizer, porém, que nosso cérebro tenha mudado ou se tornado incapaz de armazenar informações. O experimento de Joshua Foer é uma prova em contrário. Quer dizer apenas que nos adaptamos às novas ferramentas. "Antes sabíamos que as pessoas e os livros armazenavam algumas informações. Hoje esse papel cabe ao computador", diz Betsy. "A diferença é que as pessoas estão muito mais conscientes de que dependem do computador, mais do que quando dependiam de outras pessoas. E, por isso, estão mais preocupadas." Ed Cooke defende que nossa cabeça está ficando mais oca à medida que memorizamos menos informações. Ele revive, diante do computador, a frustração de Sócrates quando do surgimento da escrita. Em Fedro, o pensador grego sugere que a escrita é apenas uma sombra de sabedoria. Sócrates tem razão sobre o valor da memória: se o objetivo é atingir a excelência em alguma área ou criar algo novo, ela ainda é necessária. "Para contribuir de forma criativa, é preciso saber o máximo possível sobre a área, saber se alguém já pensou o mesmo antes", diz Ericsson. Cooke e Foer argumentam que ser criativo depende de estabelecer relações originais entre elementos conhecidos. E, quanto mais elementos conhecidos, maiores as chances de ter uma boa ideia. A pesquisadora Betsy Sparrow discorda que, ao delegar a tarefa de lembrar ao Google, estejamos pondo em risco nossa criatividade. "Quando procuramos algo on-line, é comum abrirmos janelas para assuntos que nos pareçam interessantes", afirma. "Posso começar procurando um artigo sobre psicologia e terminar em um texto sobre física. Mas, mesmo que não consiga reproduzir o que li sobre física, pode ser que isso seja proveitoso de alguma maneira." Em seu novo estudo, Betsy quer avaliar quanto as informações que não conseguimos resgatar ficam gravadas em nosso inconsciente - e podem nos ajudar. A necessidade de, hoje, memorizar informações à moda antiga foi questionada pelo escritor americano Steven Johnson em um artigo intitulado "Yes, people still read, but now it's social" ("Sim, as pessoas ainda leem, mas agora socialmente"), publicado no ano passado. Para Johnson, não é coincidência que as principais inovações científicas e tecnológicas tenham surgido nos centros urbanos, superpopulosos e dispersivos. Elas dependeriam mais do intercâmbio de ideias que da leitura solitária e concentrada. Talvez essa seja uma das razões pelas quais, depois de um ano treinando, Joshua Foer quase não use, em seu dia a dia, as técnicas que aprendeu. Uma de suas poucas aplicações é memorizar as falas das palestras que começou a fazer depois do sucesso de seu livro. Mas, numa festa, prefere anotar no celular os números de telefone novos, como praticamente todos fazemos. Apesar disso, Foer diz que o treinamento não foi em vão. Ele afirma que as técnicas são divertidas e estimulam a criatividade, porque envolvem criar associações - na maioria das vezes engraçadas - entre elementos que nada têm a ver entre si. Por isso, Foer diz que as escolas não fariam mal se dedicassem, talvez, duas horas para ensiná-las aos alunos. O principal benefício da experiência, segundo ele, foi tomar consciência da importância de prestar atenção. "Aprendi a ser mais atencioso, a notar o mundo a minha volta", escreve Foer. "Lembrar só é possível quando decidimos prestar atenção." É uma regra que não vale só para sequências de números e cartas de baralho, mas para a vida. Se passamos pelos fatos sem prestar atenção, eles não ficam registrados em nossa memória. Temos a impressão de que todos os dias são iguais e de que o tempo está voando. Se, por outro lado, fazemos um esforço para notar os fatos, podemos conseguir resgatá-los da memória. E, quanto mais lembranças temos, maior a sensação de que o tempo demorou a passar. Para valer a pena, segundo Sócrates, uma vida precisa ser memorável. Isso não mudou com o tempo nem com a tecnologia. |
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