2 de outubro de 2011

A revolta dos bons alunos : à causa dos jovens chilenos


02 de outubro de 2011
Educação no Chile | Revista Veja | Educação | BR



NO CHILE É DIFERENTE - Estudante argentina une-se à causa dos jovens chilenos, cujo apoio da sociedade é invejado pelos movimentos estudantis do Brasil e da Argentina



DIVIDAS - A familia Ocayo agora só consegue pagar a faculdade de uma das filhas. 


RESULTADO - As classes mais baixas passaram às universidades. Sete em cada dez estudantes são de famílias diploma de nível superior






RESULTADO - Em média, as famílias chilenas têm dividas que equivalem a oito meses de seus salários. Isso é mais do que o dobro do endividamento no Brasil



DE POCHETE E TUDO - Camila Vallejo, de 23 anos, musa dos protestos estudantis contra Piñera: ela quer acabar com o lucro no sistema de ensino

Falta de fiscalização estatal e endividamento das famílias para pagar a faculdade dos filhos explicam o apoio aos protestos estudantis contra o celebrado sistema educacional chileno
Num fim de tarde na capital chilena, estudantes caminham com suas mochilas. Seria uma cena prosaica, não fosse pelas máscaras que levam no rosto para se proteger de gás lacrimogêneo e pelos cartazes de protesto nas mãos. A polícia está por perto para garantir que não ocorram atos de vandalismo. Veículos da tropa de choque capazes de disparar jatos d'água e gás de efeito moral circulam pelas principais avenidas. Nas escolas em greve, as cadeiras das salas de aula são usadas como barricadas. As faculdades foram adornadas com pichações. Há mais de quatro meses, essa se tornou a "cena prosaica" do Chile, que enfrenta a maior crise educacional de sua história. Em todo o país, milhares de estudantes do ensino médio e superior fazem greve e reúnem-se em marchas para pedir mudanças estruturais na área. Eles são apoiados pela família e por boa parte da sociedade, num movimento que se transformou no principal desafio político nacional e que fez a taxa de aprovação do governo do presidente Sebastián Piñera despencar para uma mínima histórica de 22%.
O fato de a educação ter se tornado o maior problema do país é um desafio à lógica. As estatísticas do setor são louváveis. O Chile destina 7,1% do PIB à educação, mais do que países como França (6%), Inglaterra (5,7%), Brasil (5,3%) e Argentina (6.1%). No ensino superior, o total de alunos matriculados passou de menos de 200000 nos anos 80 para quase 1 milhão em 2010. O resultado do país no último Pisa, o teste de qualidade de educação mais conceituado do mundo, é o melhor da América Latina. Há duas razões para a paradoxal insatisfação generalizada com o sistema educacional. A primeira é positiva e está ligada à expectativa que se criou com o avanço econômico sustentado do país nas últimas duas décadas, com um crescimento médio anual do PIB de 5%. Os chilenos passaram a acreditar que logo atingiriam o status de país desenvolvido, e agora não se contentam com pouco. Ser melhor do que o Brasil ou a Argentina no que se refere à qualidade do ensino não basta. Eles querem mais. A segunda razão é que o sistema tem algumas falhas eclipsadas pelas boas estatísticas gerais: a baixa qualidade do ensino médio, o alto custo das universidades em proporção à renda e a má adequação das carreiras superiores ao mercado de trabalho. Em resumo, os chilenos pagam caro pelo avanço na educação, mas ainda não estão vendo benefícios imediatos.
As queixas no ensino m6dio referem-se tanto às escolas públicas quanto às privadas subsidiadas pelo governo, modalidade criada nos anos 80. Nesse modelo, também chamado de "misto o estado paga um valor fixo por jovem matriculado, o que estimula as escolas a disputar os alunos por meio da saudável concorrência capitalista. Ocorre que o governo superestimou a lei do mercado e deixou de fiscalizar as escolas subsidiadas. Como consequência, diversas instituições oferecem um ensino de qualidade muito inferior ao das escolas 100% particulares. Já as escolas públicas sofrem com a falta de investimentos em infraestrutura, pois são administradas pelos municípios, e nem todas as autoridades locais aplicam os recursos com eficiência.
A insatisfação com o ensino superior reside no fato de o governo investir apenas o equivalente a 0,3% do PIB em universidades, um dos índices mais baixos do mundo. Mas os cidadãos e as empresas gastam bastante. o equivalente a 1.7% do PIB. "O sistema educacional do país depende de forma excessiva e desequilibrada do dinheiro das famílias", díz o sociólogo José Joaquín Brunner, um dos maiores especialistas em educação do Chile. Para arcarem com o custo de formar os filhos, muitas famílias recorrem a empréstimos. Em 2005, o governo criou o Crédito com Aval do Estado, um financiamento para estimular o ingresso dos jovens de classe média e baixa nas facuidades. Qualquer aluno que atenda a certos pré-requisitos financeiros e sociais recebe o crédito, pelo qual só tem de pagar depois da graduação. Hoje. mais de 150000 estudantes universitários e de escolas técnicas, 15% do total, contam com o benefício. "Esse crédito permitiu uma expansão do ensino superior que ninguém esperava ser possível", diz Andrés Bernasconi, vice-reitor da Universidade Andrés Bello. O problema é que a taxa de juros cobrada por esse crédito é elevada, e os estudantes se formam com dívidas exorbitantes. Além disso, o crédito costuma ser suficiente para cobrir apenas parte das mensalidades. Para financiarem o restante, as famílias também acumulam débitos. E o caso do motorista Nelson Ocayo e da cozinheira Susana Soto. Pais de três filhas que cursavam a faculdade, eles tinham de pagar mensalmente cerca de 1 600 reais para cobrir a diferença não contemplada pelo crédito estudantil. Quando Nelson ficou desempregado, neste ano, duas filhas tiveram de abandonar a faculdade. "Se elas quiserem estudar, vai ser uma de cada vez", diz Susana.
A frustração das famílias. de classe média baixa é ainda maior porque o sacrifício para conseguir, pela primeira vez, ter um integrante com diploma universitário não tem dado o retorno que esperavam. Nas últimas décadas, cursar uma faculdade era visto, pelos chilenos, como a forma mais rápida de mobilidade social Isso ocorre, mas não para os que cursam instituições ruins. "Para muitos alunos, o salário que ganham depois de formados mal cobre a prestação da dívida que contrataram para estudar", diz o sociólogo Eugenio Tironi. Existe uma disparidade entre as vagas no mercado de trabalho e a prosperidade do país. O PIB do Chile cresceu 5,2% em 2010, e neste ano a previsão é de uma expansão de 6%, impulsionada pela exportação de cobre. O problema é que as universidades formam muitos alunos em carreiras para as quais há pouca demanda no mercado, e não atendem à oferta em setores como mineração e agricultura. Um estudo do governo mostrou que, entre os graduados de nível técnico, a formação de profissionais para atividades nessas áreas é praticamente inexistente. O fenomeno se repete entre os graduados em universidades. "Muitos acabam contratados como simples técnicos, porque não conseguem trabalho em suas carreiras", diz o economista Hernán Frigolett.
Depois de mais de quatro meses de batalhas urbanas entre os jovens e a polícia, na semana passada os estudantes concordaram em negociar com o governo. Há pontos comuns entre suas reivindicações e as propostas do governo, como a redução dos juros do crédito estudantil e mais investimento no ensino público. Camila Vallejo, a bela morena de olhos verdes que preside a Federação de Estudantes da Universidade do Chile, já se sente vitoriosa. "Mostramos para o mundo que nossa educação não era o exemplo que se pensava", diz a musa do movimento estudantil. Como bons esquerdistas, ela e seus companheiros, inclusive o namorado cubano, exigem a proibição do lucro no ensino, o que representaria a expropriação de 4000 escolas de ensino médio e setenta centros de formação técnica. Ironicamente, os estudantes se baseiam em uma lei aprovada em 1990 pelo ditador de direita Augusto Pinochet, nunca verdadeiramente aplicada, que proibia o lucro em universidades. Isso significaria o desmanche de um sistema de ensino que, apesar das falhas, é o mais bem-sucedido da região. Por sorte, nesse ponto a maioria da população discorda dos estudantes.

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