17 de junho de 2012

Os dinossauros de Nova York - DORRIT HARAZIM


do CONTEÚDO LIVRE 

 “Educação”,
em latim,
significa ação de
criar, nutrir,
explorar


Duas semanas atrás o Departamento de Educação da cidade de Nova York publicou o edital de licitação para a elaboração anual dos testes de avaliação para cerca de 1,1 milhão de alunos da rede pública de ensino. Típica não notícia. Ou algo de interesse restrito às empresas do ramo.

Este ano, contudo, estava todo mundo de olho — pais, alunos e professores das quase 1.700 escolas da cidade, além de políticos locais, lideranças educacionais, religiosas e representantes de minorias. Menos de dois meses antes, estavam todos em pé de guerra. E não era para menos.

Foi no final de março que o tabloide “New York Post” publicou uma notícia estarrecedora para a cidade que se orgulha de ser a mais cool do planeta. Num rompante de fundamentalismo politicamente correto, somado à falência múltipla de sensatez, a Divisão de Desempenho Escolar e Apoio do Departamento de Educação elaborara um apêndice ao edital de licitação, com uma lista de 50 palavras e conceitos a serem evitados pelas empresas fornecedoras de testes.

Cada tópico considerado inadequado, explicava o apêndice, se enquadrava em quatro óbices: a) evocar emoções desagradáveis nos alunos e afetar a sua habilidade de realizar o teste em condições mentais ideais; b) ser por demais polêmico junto à população adulta; c) já ter sido usado em demasia em livros didáticos e testes anteriores, tornando-o tedioso para o aluno; d) soar preconceituoso contra algum grupo de pessoas.

Em seguida vinha a lista de palavras e conceitos proibidos, por ordem alfabética. De tão delirante, um gaiato sugeriu que fosse lida em voz alta pois soaria como um poema da geração beat. Uma amostra abreviada: abuso (físico, sexual, emocional ou psicológico), aniversários, câncer (e outras doenças), catástrofes/desastres (tsunamis e furacões), celebridades, crianças passando por tempos duros, dinossauros, divórcio, evolucionismo, sem-teto, mansões com piscinas, perda de emprego, halloween, armas nucleares. Política, música rap, religião, rock-and-roll, sexo, escravidão, terrorismo, fugir de casa, ratos e baratas, violência.

Seriam dinossauros capazes de “evocar emoções desagradáveis”? O artigo do “Post” (diário pertencente ao grupo de Rupert Murdoch) especulava que a inclusão dos simpaticões “dinos” tão tietados por crianças poderia ser explicada por evocar a teoria da evolução das espécies, e portanto aborrecer os fundamentalistas bíblicos que têm no Museu do Criacionismo de Petersburg, no estado de Kentucky, a sua meca.

O veto a “festas de aniversário” era um dos mais intrigantes da lista, uma vez que o apêndice não vinha acompanhado de um manual de uso. A dedução feita pela imprensa é que poderia ofender seguidores das Testemunhas de Jeová, que não celebram aniversários. O halloween (Dia das Bruxas) poderia sugerir paganismo, “divórcio” seria estressante demais para alunos de lares tumultuados e “terrorismo” capaz de assustar moradores da cidade que teve as Torres Gêmeas pulverizadas. Mas ninguém até hoje conseguiu explicar a exclusão de “rock-and-roll”.

De início, diante da grita geral na cidade satanizada pelos conservadores como perigosamente liberal, o Departamento de Educação argumentou que há cinco anos os editais vinham acompanhados de listas de “sugestões” para nortear as empresas e que ademais estava apenas seguindo uma norma adotada em vários outros estados. De fato, a Califórnia já expurgou a palavra “erva” dos testes do ensino público e a Flórida baniu frases que contenham a palavras “furacão”. No Texas, a batalha ideológico/cultural em torno do conteúdo dos livros didáticos tem resultado em aberrações históricas.

Mas proibir referências a “perda de emprego” e palavras que sugiram riqueza na Nova York de 2012 foi esquisito demais. Passada uma semana de debates e críticas em todas as mídias imagináveis, o prefeito Michael Bloomberg recuou. “Após reavaliação da nossa orientação inicial e dada a reação dos pais de alunos, eliminamos a lista de palavras não recomenusadadas”, comunicou.

A palavra “educação”, em latim, significa ação de criar, nutrir, explorar, como lembrou a propósito o professor Sam Wineburg, diretor do Departamento de Educação da Universidade de Stanford. “Quer dizer que a garotada aprenderia a respeitar a diversidade de crenças mantendo-se completamente ignorante sobre a existência delas?”, indagou um assustado nova-iorquino em carta ao jornal. “Sinto calafrios ao pensar que isso chegou a ser cogitado em Nova York. Imagine-se em que estado está o resto do país”, acrescenta outro.

Dinossauros existem. Até hoje.

O Globo
17/06/2012 

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