3 de fevereiro de 2013

MARCELO GLEISER, Sonhos de um visionário


Folha de S.Paulo, 3/2/2013

Johannes Kepler, um dos personagens mais fascinantes da ciência, é também o mais desconhecido entre os grandes
Dos grandes patriarcas da ciência, Johannes Kepler (1571-1630) é o menos conhecido. Os feitos de Isaac Newton e da sua lei da gravidade (e das leis de movimento, da ótica e a criação do cálculo), de Galileu e de suas descobertas com o telescópio (e da lei da queda livre, do movimento pendular), e de Copérnico, o homem que pôs o Sol no centro do Sistema Solar, são conhecidos. E o pobre do Kepler? Temos de coçar a cabeça, tentando lembrar do que fez.
Eu bem que tentei ajudar, escrevendo um romance sobre a vida e obra dele: "A Harmonia do Mundo". Mas o que um romance pode fazer contra o mártir da ciência (Galileu), o maior gênio de todos os tempos (Newton, talvez) ou o impetuoso herói que mudou nossa percepção do Cosmo (Copérnico)?
Temos de resgatar a obra de Kepler, sem dúvida um dos personagens mais fascinantes da história da ciência. Kepler descobriu as três leis do movimento planetário: planetas giram em torno do Sol em órbitas elípticas; a linha imaginária que os liga ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais; e o quadrado do período da órbita do planeta está para o cubo da distância dele ao Sol.
Escrito assim, parece mesmo meio sem graça. Mas, como tudo na vida, o que importa é o contexto. Kepler foi o elo entre a Antiguidade e a Modernidade, um visionário que sonhava em demonstrar que o Cosmo, em sua ordem, era produto de uma mente divina versada nas leis da geometria. Para ele, fiel ao que pregavam Pitágoras e depois Platão, apenas através da matemática seria possível descrever a harmonia da criação. A relação entre o homem e o Cosmo respondia às mesmas ressonâncias que ditavam a beleza da música e o arranjo das órbitas planetárias. Nisso, Kepler via uma unificação profunda no universo, expressa através das interações entre o tempo, o espaço e a alma humana. O homem era parte indissolúvel dessa ressonância cósmica. Na juventude, Kepler buscou justificar a astrologia através de leis ligando o homem ao Cosmo, algo que despertou grande inquietude em sua vida.
Se sua espiritualidade nos parece hoje um tanto inocente, vale lembrar que o sonho de uma harmonia universal o inspirou por toda a vida e foi o responsável pelas suas incríveis descobertas: as primeiras leis matemáticas da astronomia baseadas em dados observacionais.
Kepler descobriu a elipse não porque a procurava, mas porque era a única curva consistente com os dados em que baseava seus estudos, obtidos pelo excêntrico nobre e astrônomo dinamarquês Tico Brahe. Nisto, mostrou sua incrível modernidade científica: se uma teoria está em conflito com dados, mude a teoria. O círculo, após reinar por milênios, finalmente caiu.
Mesmo que sua busca por uma harmonia cósmica, o "mistério cosmográfico", fosse mais um devaneio do que ciência, ela representava a aspiração mais nobre do ser humano: transcender sua existência em busca de um saber eterno.
Hoje identificamos essa mesma vertente em teorias de unificação da física, também fundadas em aspirações de uma harmonia universal, agora baseada em vibrações de cordas fundamentais: a nova harmonia do mundo. Como Kepler, sonhar é preciso. Como Kepler, o sonho só serve se, ao acordarmos, entendermos melhor o mundo real.

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