1 de novembro de 2013

Prestes a deixar a ABL, Ana Maria Machado diz: ‘Nunca vou fazer narrativa multimídia’


Ao longo das últimas semanas, Ana Maria Machado frequentou de forma assídua as páginas da imprensa. Semana passada, em artigo no GLOBO, ela entrou no debate sobre biografias para defender a liberdade de expressão. Há pouco menos de um mês, discursou na abertura da Feira de Frankfurt. Em agosto, recebeu o Prêmio Zaffari & Bourbon, com uma frase contundente: “Tiveram que me engolir”, referindo-se ao Jabuti do ano passado, em que um jurado deu zero para seu romance “Infâmia”. Ana Maria está a dois meses de deixar a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL), depois de dois anos no cargo. Nesse período, fez projetos em favelas, enquanto trabalhava para divulgar a literatura nacional no exterior. Agora, acaba de lançar seu novo livro infantojuvenil: “Enquanto o dia não chega” (Alfaguara). Depois de pesquisar sobre o século XVI, ela conta as aventuras de quatro adolescentes, ancoradas na História do Brasil. A escritora recebeu O GLOBO para esta entrevista, em que faz um balanço de sua gestão na ABL e comenta as últimas polêmicas do mundo literário.
De onde veio a ideia para o novo livro? E por que situá-lo no século XVI?
É tão difícil saber de onde veio a ideia, porque ela é sempre diferente. Tem raízes numa pesquisa que eu fiz. Quando eu li um pouco sobre grumetes e jovens marinheiros largados na costa brasileira, ou que fugiram pra ficar aqui, fiquei pensando nesses adolescentes em um Brasil que não existia ainda. Eu queria que houvesse uma variedade de personagens. Então, pus no século XVI. Além disso, tinha outra ideia, que era um desafio linguístico: a vontade de escrever uma história em que se levasse algum tempo na ambiguidade, sem o leitor saber o gênero do protagonista. Era um desafio linguístico escrever sem ser no masculino ou no feminino.
Nas últimas semanas, debateu-se muito a questão das biografias. O que a senhora achou do pronunciamento de Roberto Carlos?
Acho que o debate está ficando mais racional. Acredito que tem que se publicar a biografia do jeito que ela é escrita. Se houve calúnia, o caluniador deve ser punido, e rápido. Liberdade de informação e privacidade não são incompatíveis. O que é incompatível é a mentira. Mentir é que tem que ser punido. Veja o exemplo do caseiro Francenildo (que revelou encontros do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci com lobistas numa mansão de Brasília). Ele não era filho do homem que o criou, e ninguém sabia disso. Quando se entra no sigilo bancário do Francenildo (os dados, vazados, mostravam depósitos suspeitos) e se publica o assunto em todo canto, ele precisa contar que o dinheiro veio de um cara que é seu verdadeiro pai. Isso afetou a honra da família dele. Aconteceu algo com quem fez isso? Ainda assim, sou absolutamente a favor da biografia não autorizada. A questão da honra é que tem que ficar por conta da responsabilidade de quem escreve.
Muitos novos livros infantojuvenis trazem referências de fora, como vampiros e fadas. O elemento brasileiro está se perdendo?
O estrangeiro e o nacional sempre conviveram muito. Ao mesmo tempo, surgiram coisas novas. Na Inglaterra, já aparecem histórias de vampiro no meio da obra da Jane Austen. Essa coisa de um gênero revisitar um clássico é um momento da pós-modernidade. Mas não acho que tira o lugar dos outros. Só soma.
Hoje fala-se muito em narrativas multimídia. Já pensou em fazer isso?
Não. Inclusive, quando me pediram, eu disse que não tenho nenhuma vontade. Não vou fazer nunca. O que me atrai em literatura é a palavra. Não é nem o assunto nem a idade do leitor, mas o jogo com a linguagem.
Alguns escritores veem nesses novos livros uma degradação da cultura literária. A senhora concorda?
Não acho que seja cultura literária, então não é degradação. Nem todo livro é literatura: do catálogo telefônico à bula de remédio, passando por alguns best-sellers (risos).
Em outubro, Paulo Coelho cancelou sua ida a Frankfurt. O que achou da atitude do escritor e da ausência dos autores que ele defendia?
Não fui eu que escolhi a delegação, eu não tenho nada a ver com isso, me poupa. Se eu tivesse escolhido, podiam me perguntar. Eu vivo indo a festas nas quais eu gostaria que outras pessoas fossem convidadas. Quem convida é o dono da casa. Não acho que é motivo para boicotar o evento. Você não vai conseguir que eu me pronuncie sobre a lista, porque eu não sou autora de lista. Não sou crítica de lista, leitora de lista.
O que a senhora achou das acusações de que a lista era racista?
Vou dizer o que disse para um jornalista alemão. Eu disse: “Olha bem para mim e me diz quanto você acha que eu sou negra, índia ou branca.” Ele me disse que nós somos misturados. Eu respondi: “Era isso que eu queria mostrar. Agora, eu gostaria de fazer uma pergunta: por que vocês têm essa obsessão com raça pura? Por que tinha que ter o negro puro ou o branco puro?” Eles têm essa fixação. Eles acreditam em raça pura há muito tempo. Passaram pelo que passaram e continuam acreditando. Nós sabemos perfeitamente que ela não existe.
Gostou do discurso de Luiz Ruffato?
Gostei. Acho que ele pegou um ângulo dele (o escritor fez duras críticas à desigualdade social no país e à violência histórica contra índios, negros, mulheres e homossexuais). Que é o que ele faz sempre. Esse discurso eu já vi parecido. Ele já tinha dito parte disso aqui na Bienal, numa mesa comigo e com o Mia Couto. Ele foi convidado para falar isso, porque é o que ele fala. E acho que algumas pessoas ficaram agressivas demais com ele. É bom fazer colocações políticas sempre.
Que balanço a senhora faz dos últimos dois anos à frente da ABL?
Nossa parceria com a Flupp nos deixou entretecidos. Oferecemos cursos para técnicos de bibliotecas, que vão atuar em áreas de UPPs e no interior. Também temos o Academia vai à Academia, com imortais que vão à Academia da Polícia Militar falar aos cadetes. E temos projetos no exterior, cujo objetivo é tornar a literatura brasileira mais conhecida, em cooperação com universidades estrangeiras.
A senhora falava em levar a ABL ao morro, refletindo a euforia com a polícia pacificadora. Desde junho, a polícia passou a ser questionada. O que a senhora pensa disso?
Que a polícia sempre teve um lado bom e outro ruim, nós sempre soubemos. E acho que tentamos estar junto da banda boa. O fato de a banda podre se sentir acuada, e ficar mais agressiva por perder terreno, não significa que vamos abandonar os projetos. Por quê? Você achava que a gente devia cruzar os braços, sentar na porta do Sérgio Cabral e dizer “Fora, Sérgio Cabral, eu não brinco mais”? Vamos apoiar projetos bons, e não tomar partido em divergências partidárias.
Recentemente, o jovem autor Raphael Draccon disse que Rubem Fonseca, se surgisse hoje, não seria publicado, por não se empenhar na divulgação de seus livros. Os autores estão virando mercadoria para as editoras?
É uma deturpação do nosso tempo, mas uma realidade. Tanto que, quando um jornalista vem entrevistar um escritor, ele pergunta sobre tudo, menos sobre o livro. Não se publica mais resenha. Saiu um romance meu na Espanha e publicaram resenha de uma página. No Brasil, você tem entrevista de uma página

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