MAGGI KRAUSE - É JORNALISTA E DIRETORA DE CONTEÚDO DA FUNDAÇÃO VICTOR CIVITA
28 Julho 2014 | 15h 35, Estado de S.Paulo
Mesmo diante da pretensa universalização do ensino - 92,5% dos brasileiros de 4 a 17 anos vão à escola* -, 3,4 milhões ainda não conseguem estudar. Crianças e jovens suficientes para lotar 43 estádios do Maracanã ficam de fora das salas de aula todos os dias! Quem são eles? Milhões são negros de famílias pobres das periferias urbanas. Outros milhares moram na zona rural, em comunidades indígenas, ribeirinhas ou quilombolas; outros ainda apresentam algum tipo de deficiência. São vítimas da violência, do trabalho infantil, do preconceito, da falta de preparo e de infraestrutura. Os motivos que distanciam dos estudos as camadas mais vulneráveis da população foram tema de uma série de reportagens realizada pela Fundação Victor Civita (FVC), em apoio à campanha Fora da Escola Não Pode!, organizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
A exclusão esbarra em direitos não cumpridos, como os dos povos indígenas. Por lei, cada aldeia deveria ter uma instituição oficial com ensino que respeite a cultura e a língua daquele povo. A questão da terra, motivo de disputas judiciais, obstrui a criação de escolas e a falta de documentos (entre os índios de até 10 anos, mais de 30% não possui registro civil), dificulta a matrícula em unidades regulares. Outras barreiras são a distância geográfica e a formação de professores de cada etnia. O ensino acontece de forma improvisada, sem educadores ou recursos. Em regiões isoladas, como no médio Xingu, só há turmas até o 5.º ano. Nesse caso, desistir da escola vira a regra.
A periferia das metrópoles, sem segurança e, por vezes, dominada pelo narcotráfico, também não favorece o estudo. A pobreza obriga uma menina a cuidar dos irmãos, a gravidez na adolescência é comum, a falta de transporte desestimula. Uma herança perversa faz com que 63% das crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no Brasil seja afrodescendente. Após a abolição, escravos libertos seguiram afastados dos direitos básicos e hoje 70,8% da população extremamente pobre é negra ou parda. Desenha-se aí outro dilema: como exigir que os pais das crianças excluídas lutem por seus direitos se muitos deles também não tiveram acesso à escola? Como se valer das políticas públicas se até a leitura de um documento é difícil? Esse ciclo perpetua o analfabetismo e a desinformação.
Quem mora no campo, em comunidades ribeirinhas ou quilombos frequenta escolas multisseriadas nos anos iniciais do ensino fundamental e, ao chegar ao 6.º ano, depende de transporte ou precisa se transferir de cidade. A evasão, reflexo de baixa qualidade do ensino, de problemas de aprendizagem e da repetência, leva a um resultado triste: na zona rural, 22,8% das pessoas com 15 anos ou mais são analfabetas.
Alta vulnerabilidade. Situações de alta vulnerabilidade colaboram para engrossar o rol dos excluídos. Além do trabalho infantil, persistente em várias regiões do Brasil, há jovens sujeitos a exploração sexual, vítimas de pobreza, alcoolismo e violência doméstica. Já os pais de crianças com deficiência enfrentam batalhas e preconceito para matriculá-las, mesmo que seu direito de estudar esteja garantido por lei desde 1989. A rede pública de ensino conta com um processo de inclusão mais intenso, mas nem sempre ao aluno condições de aprender. O Censo Escolar 2011 revelou que só 9% das escolas de Ensino Fundamental têm profissionais para atendimento educacional especializado (AEE), 19% têm sanitários adequados e 17% contam com salas e vias adaptadas. Pensado para famílias de baixa renda com crianças ou jovens com necessidades especiais, o Benefício de Prestação Continuada Escola (BCP Escola) cruza dados para identificar quem não estuda. No início do programa, em 2008, 70% estavam fora da escola, hoje são 30%. A melhora sinaliza que, com esforço, a educação inclusiva é possível.
Expor as mazelas do poder público é tarefa do bom jornalismo e um exercício de cidadania. O problema dos sem-escola existe, a vontade de solucioná-lo por meio de leis e mecanismos de organização política e social, também. Mas leis não conseguem sanar a distância entre a comunidade ribeirinha e a escola da cidade mais próxima, ou ultrapassar o preconceito contra crianças negras e pobres, ou a falta de pessoal especializado para atender os deficientes. De todo modo, a inércia é a atitude que mais machuca a sociedade. Uma reportagem da Fundação Victor Civita retratou alunos que não conseguiam matrícula por motivos diversos. Ao ler sobre uma menina vítima de violência doméstica, a secretaria de Educação de Teresina se mobilizou. Dos quatro casos expostos pela imprensa na ocasião, apenas um foi resolvido. As pendências em cada comunidade exigem articulação entre secretarias, mobilização de gestores escolares e vontade das famílias. É complicado, mas possível. Seguindo por esse caminho o país chegará mais perto de dar a qualquer pessoa a oportunidade de estudar e, desse modo, melhorar a qualidade de vida de uma massa desfavorecida de brasileiros.
* Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012 (Pnad)
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