Pode um governo ter informações sigilosas de seus cidadãos? Essa pergunta deveria estar atualmente no centro dos debates, pois 2013 será lembrado como o ano em que descobrimos o fim inelutável da privacidade. Não houve fato mundial mais paradigmático em 2013 do que as revelações a respeito da extensão cinematográfica do sistema de espionagem norte-americano.
A privacidade foi, entre outras coisas, uma invenção política ligada à defesa da autonomia dos sujeitos em relação ao poder governamental. Mas, como diz o governo norte-americano, "Todo mundo espiona". O que vimos, no entanto, não foi "espionagem" como a conhecemos, ou seja, essa procura de informações estratégicas sobre a vida política e econômica por meio do monitoramento das atividades de políticos, empresários e congêneres.
O que Edward Snowden nos fez ver, e isso fica cada vez mais claro com o passar dos dias e das descobertas, está para além da espionagem. O ato de monitorar toda e qualquer pessoa em toda e qualquer circunstância é, na verdade, um novo paradigma de governo.
Para controlar pessoas, não preciso estar atento a todos os seus movimentos. Necessito apenas que elas acreditem que, a qualquer momento, posso entrar em seu espaço privado, abrir a porta de seu quarto e quebrar todos os cadeados. Posso armazenar 70 milhões de telefonemas em um mês e nunca saber o que fazer com tudo isso. Não importa. O que importa é você saber que seu telefonema pode, Deus sabe lá por que, acabar no espaço público.
No fundo, isso mostra como a caça ao terrorismo sempre foi um pretexto fraco e uma manobra diversionista. Na verdade, o terrorista é você. O verdadeiro alvo era controlar você, dissolver os discursos que ainda faziam da privacidade uma defesa e fazer você sentir a desproporção brutal entre seu poder e o poder da plutocracia que tomou de assalto boa parte dos governos ocidentais.
Como mostrou a França quando criou um grande banco de dados de segurança nacional chamado Hadopi, começa-se fichando pretensos terroristas e termina-se fichando sindicalistas, manifestantes, jornalistas e ativistas.
Nesse sentido, a melhor defesa é proibir que governos tenham direito a armazenar informações sigilosas de seus cidadãos. Todos os cidadãos devem ter o direito a ter acesso a todas as informações armazenadas sobre eles que estejam em posse dos governos.
As dificuldades produzidas em processos jurídicos por uma ideia dessa natureza são infinitamente menores que a corrosão --produzida pela transformação das vidas privadas em espaços de extrema vulnerabilidade-- do pouco que tínhamos de democracia.
Folha de S.Paulo, 5/11/2013
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