1 de julho de 2017

China: Meritocracia milenar

Análise


Competição de xadrez entre pais e filhos em escola primária na província de Liaoning, na China
Competição de xadrez entre pais e filhos em escola primária na província de Liaoning, na China
RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Meritocracia de verdade não existe nem nunca vai existir em lugar nenhum do mundo, já que, para que ela exista, é preciso real igualdade de oportunidades. Mas mobilidade social é fundamental para o verdadeiro desenvolvimento de um país. Quanto mais as pessoas puderem se esforçar para crescer, melhor para toda a sociedade.
Na China, diferentemente da maioria dos países do mundo, há pelo menos uma forma de mobilidade social, aberta há mais de mil anos, a todas as pessoas de qualquer idade: o exame imperial, que na sua versão moderna é dividido em dois tipos: os concursos públicos, que parecem os que acontecem no Brasil, e o gaokao, similar ao Enem.
Na Ásia, a competição pelas melhores escolas é feroz, e as famílias sacrificam muitos recursos para incentivar os filhos a galgar o sistema educacional como saída da pobreza. O sistema educacional na China é melhor que no Brasil justamente porque as famílias demandam e estão dispostas a gastar mais recursos em educação.
O caso chinês é interessante porque mostra o poder da evolução de normas sociais e como elas impactam o presente, apesar de terem surgido dezenas de gerações atrás.
O exame imperial chinês surgiu há mais de 2.000 anos, na dinastia Han, e de meados da dinastia Tang (que durou de 618 a 901 a.D.) até 1905, quando foi abolido, era a principal forma de entrada na burocracia chinesa.
Assim como no Brasil hoje, com o sistema de concursos públicos, o exame imperial era uma forma de ascender à elite. Como o exame imperial durou mais de mil anos e esteve durante esse tempo combinado a um sistema imperial no qual as possibilidades de ascensão social eram praticamente inexistentes, ele gerou, através do tempo, uma demanda grande por investimentos educacionais por parte das famílias chinesas.
Mas como, no caso chinês, as famílias venciam a miopia do curto prazo, que aflige o Brasil? A resposta é uma combinação de normas sociais diferentes e um prazo realmente longo para que os sinais do mercado de trabalho gerassem mais investimentos educacionais.
Em especial, a pobreza absoluta e períodos de miséria tornaram a unidade familiar o principal construto social, no qual os sacrifícios de curto prazo e mecanismos de seguro intrafamília são a norma, de forma a suportar períodos traumáticos.
O resultado é uma quebra do curto-prazismo pelo foco no sacrifício familiar. É por isso que muitos dos países asiáticos estão entre os mais poupadores do mundo e também entre aqueles que mais investem recursos familiares em educação. Sempre houve o exame imperial como saída da pobreza, e a unidade familiar, como superior ao indivíduo, permite tomadas de decisão com prazo mais longo.
Mas, se no Brasil também temos o Enem e os famosos concursos públicos, com milhares de concurseiros dedicados a uma vaga no setor público, por que na China os concursos geram mobilidade e aqui não (a maioria dos que passam no Brasil é membro das elites, com diversos novos desembargadores sendo filhos de membros antigos, por exemplo)?
São três as razões:
1) na China, os concursos geraram externalidades positivas porque motivaram todas as famílias a investir mais em educação;
2) diferentemente do Brasil, o nível de rentismo do funcionalismo público -ou seja, o quanto de renda da sociedade é extraído sem contrapartida- é muito menor, já que os salários são em média menores do que no setor privado, embora mais altos que a média dos salários do país;
3) e, por último, as normas sociais não veem o Estado como provedor -a competição por educação gera também maior competição no mercado de trabalho, com uma população muito mais produtiva que no Brasil ou em outros países de renda média.
O exame imperial no passado e o gaokao hoje criaram uma pressão da sociedade por educação que não encontra paralelo em outras economias mundiais. Esse investimento familiar em educação é fundamental para explicar o recente sucesso econômico da China e é parte do modelo de meritocracia com características chinesas.

Capitalismo de compadre na China

Recepcionistas preparam chá para cerimônia de abertura de conferência no Grande Salão do Povo, em PequimJason Lee/Reuters
Recepcionistas preparam chá para cerimônia de abertura de conferência no Grande Salão do Povo, em Pequim
RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sei que é difícil de imaginar, mas a corrupção na China é muito, mas muito maior que no Brasil. Ainda assim, o país cresce de 6% a 14% ao ano pelo menos desde a década de 1980.
Dois exemplos de corrupção do dia a dia: quando dava aula na Universidade de Nottingham em Ningbo, o funcionário encarregado das instalações esportivas queria me cobrar uma propina para acender as luzes da quadra de tênis; em outro caso, para que um empresário local, irmão de um professor da universidade, tivesse permissão para construir um prédio ele precisou comprar carros novos para o corpo de bombeiros.
Assim como no Brasil, a relação de corrupção é extremamente forte entre o sistema político e empresarial. O nosso capitalismo de compadre não é muito diferente na China.
Mas por que então a China é bem sucedida e aqui estamos parados no tempo? Na verdade, tanto a China quanto o Brasil têm um teto ao seu desenvolvimento, o que os economistas chamam de armadilha da classe média. Países corruptos conseguem sair da pobreza, mas não conseguem dar o salto seguinte.
Corrupção diminui o PIB potencial e os países empacam. Podemos ver isso ao analisarmos a relação entre a percepção de corrupção, índice da Transparência Internacional no qual 100 representa um país completamente livre de corrupção e 0 um país absolutamente corrupto, e a renda per capita. Há claramente uma correlação estrutural: países mais corruptos simplesmente são mais pobres.
Para realmente se desenvolver, países devem combater a corrupção. É por isso que os casos chineses e brasileiros são tão interessantes. Em ambos os países os casos de corrupção estão nas primeiras páginas de jornais há alguns anos.
No caso chinês, o premier Xi Jinping, que assumiu o comando do sistema político do país em dezembro de 2012, colocou como um dos pilares da sua administração o combate à corrupção. Para isso, iniciou uma gigantesca campanha para reformar as instituições do Estado, que continua até hoje e não tem data para acabar.
O consumo de produtos de luxo no país desabou, inclusive com queda das ações de cassinos em Macau e empresas de luxo do Ocidente, resultado do medo dos burocratas chineses de serem alvos das novas medidas de moralidade.
Mas resta uma grande dúvida. Essa campanha é para valer ou só parte da estratégia de Xi Jinping para consolidar seu poder?
Com certeza a sua campanha anti-corrupção teve algum efeito prático. Mais de 100 mil burocratas foram punidos, seja com sanções administrativas ou prisão. Mas à reboque também vieram alguns inimigos políticos do presidente.
O caso mais famoso é o de Zhou Yongkang, ex-membro do Politburo, composto pelos nove políticos mais importantes do país. Ele foi expulso do Partido Comunista Chinês (PCC) em 2014 e condenado à prisão perpétua por corrupção em 2015. Bens da sua família no valor de US$ 15 bilhões foram bloqueados e, em 2016, sua mulher e filho também foram presos.
Em mais uma semelhança com o Brasil, diversos executivos da Petrochina ou dos reguladores do setor de petróleo chinês, como Zhou Bin, Li Hualin e Jiang Jemin, todos da rede de Zhou, também foram presos com provas de enriquecimento ilícito.
Prisões de medalhões não se resumiram à rede de Zhou. Outro membro do Politburo e o segundo em comando na hierarquia militar, Xu Caihou, também foi preso, acusado de receber propina em troca de facilitar promoções dentro do serviço público.
Alguns analistas acreditam que a campanha moralista tem como efeito apenas remover oponentes políticos para permitir que Xi Jinping se mantenha no poder por mais um mandato, algo que não acontece desde Mao Tsé-Tung e que seria irregular, dadas as regras do PCC.
Combater a corrupção, por si só, não vai trazer crescimento econômico de curto prazo. Ao contrário, como mostram os casos brasileiro e chinês, ao mudarmos as formas de negociação entre agentes públicos e privados o nível de investimento cai, no curto prazo, o que ajuda a explicar os dados de crescimento brasileiro em 2015 e em 2016 e parte da diminuição do crescimento chinês.
Contudo, uma mudança institucional pode representar, se somadas a outras reformas que fortaleçam os pilares institucionais, um aumento no crescimento potencial nas próximas décadas, o que levaria a uma porta de saída da armadilha de classe média no qual se encontram diversos países, entre eles os grandes países emergentes como Rússia, Brasil, Turquia e, claro, a China.

Na China, sistema financeiro e mercado de capitais são inovadores, mas frágeis

Notas de yuan em banco de Beijing, na ChinaKim Kyung-Hoon/Reuters
Notas de yuan em banco da capital chinesa Beijing
RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A economia chinesa é cheia de paradoxos. Em que outro lugar do mundo se pode ministrar um curso de educação para executivos de um fundo de "venture capital" estatal com US$ 15 bilhões de capital?
Mais do que isso, como a empresa é estatal, todos os funcionários da empresa foram obrigados a assistir minha aula, como se estivessem no primário.
Qual a principal reclamação dos executivos do fundo? Os dados das empresas em que estavam investindo ou queriam investir não eram confiáveis.
Ou seja, em um fundo estatal de investimento em novas empresas, com elevado risco, o maior deles era a corrupção local, que resultava em manipulação de dados de balanço.
"Venture capital" estatal é quase uma contradição em termos. Somado à desconfiança nos dados básicos, isso mostra como existe uma linha tênue entre crescimento econômico e eficiência.
O exemplo acima mostra algumas das características peculiares do sistema financeiro chinês: é um dos mais robustos, inovadores e frágeis do mundo.
É um dos grandes motores do crescimento chinês, mas, diferente do brasileiro, é muito menos regulado do que se esperaria de um mercado emergente.
O desenho do sistema chinês é simples: é aberto à competição interna, mas isolado do resto do mundo. Os bancos comerciais no país são em sua maioria estatais, mas empresas privadas (a Tencent, por exemplo) podem competir em diversos segmentos do mercado dominados pelos bancos estatais.
Além disso, os bancos regionais, diferentes dos brasileiros do passado, competem de verdade, e não são somente veículos de financiamento dos governos locais.
O sistema de gestão de riscos chinês é do século 20, com controles internos que permitem fraudes de desenho animado, como funcionários saindo de bancos com maletas cheias de dinheiro ou agências que descontam duplicatas de milhões de dólares de empresas de fachada.
Ao mesmo tempo, há uma explosão de empresas inovadoras na área financeira, as chamadas "fintechs".
Enquanto no Brasil as empresas do ramo assinam manifesto para tentar se integrar ao sistema financeiro, muito regulado pelo Banco Central, na China há autorregulação e as empresas são livres para se integrar ao sistema e oferecer soluções mais sofisticadas.
Um exemplo é o pagamento de contas pelo celular por meio de autenticação de digitais e empréstimos via WeChat, a versão local do WhatsApp -sim, na China é possível pegar empréstimo por aplicativo de conversa de celular.
Não há desenvolvimento sem sistema financeiro. No Brasil, a busca por segurança gera ineficiência e uma das maiores taxas de juros do mundo.
Na China, por outro lado, o crescimento do crédito assusta. Enquanto nos últimos 20 anos a relação crédito/PIB (Produto Interno Bruto) no Brasil subiu de 54% para 70%, ela explodiu no país asiático, saindo de 86% em 1996 para mais de 220% hoje em dia.

O que o Brasil tem a aprender com o crescimento da China

Soldado chinês parcialmente encoberto por bandeira vermelhaJason Lee/Reuters
Soldado do Exército de Libertação Popular parcialmente encoberto por bandeira da China
RODRIGO ZEIDAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A China é o país mais capitalista do mundo. Não, você não leu errado. Na China a competição impera: entre cidades, regiões, empresas e mesmo entre pessoas.
Esse não é o único paradoxo no país. O partido comunista se posiciona como o herdeiro natural de um dos maiores impérios que o mundo já viu e de uma civilização que teria mais de 5.000 anos. Ao mesmo tempo, nenhuma outra instituição destruiu tantos artefatos históricos como o poder central chinês.
A população poupa muito, já que quase não há rede de proteção social no país, comunista no discurso e nas instituições, mas não na prática. O sistema financeiro tem gestão de risco ultrapassada, mas fintechs de ponta.
O budismo, em suas mais diferentes vertentes, é pacifista, embora o Exército de Libertação Popular seja a mais numerosa das forças armadas do mundo, com mais de 2 milhões de soldados.
As famílias traçam estratégias nas quais dependem o mínimo possível do Estado, mas o nacionalismo é particularmente forte entre todas as classes sociais.
As elites sempre existiram num patamar diferente do resto da sociedade, mas ainda hoje há uma forma clara e relativamente democrática de ascensão social (o "gaokao", exame de admissão para universidades e que é quase uma continuação do antigo exame imperial).
O mais importante é que o país deu um gigantesco salto, saindo de uma situação de penúria, no qual 88% das pessoas viviam em extrema pobreza em 1980, para o patamar atual de país de classe média baixa, como o Brasil.
Somente 2% vivem com menos de US$ 1,90 por dia em paridade de poder de compra, o corte para se considerar uma pessoa em condição de extrema pobreza.
Assim como no Brasil, há um grande medo: uma sociedade presa na armadilha da classe média, na qual a saída da pobreza é possível, mas o passo seguinte, verdadeiro desenvolvimento, dificil.
O objetivo dessa série de artigos, no qual esse é o primeiro de quinze, é explorar quatro dimensões: histórica, econômica, política e cultural. Os objetivos são entender o processo de desenvolvimento chinês e seu desenho contemporâneo.
Temos o que aprender com o crescimento chinês, mas muitas vezes as diferenças entre nossa história e a chinesa são muito diferentes. Mesmo nesse caso, é interessante entender as idiossincrasias chinesas.
A China contemporânea surge realmente em 1978, quando Deng Xiaoping chega ao poder e inicia um primeiro ciclo de reformas, que vai até o final da década de 1980. Nesse ciclo o país começou a redesenhar suas instituições.
O principal objetivo era desfazer as mudanças coletivistas introduzidas por Mao Tse-tung e que, no auge da megalomania chinesa, o Grande Salto para a Frente, levaram à morte dezenas de milhões.
O nosso "salto para a frente", o milagre econômico na década de 1970, também matou muita gente (a maior parte de forma indireta), mas aqui não aprendemos com nossos erros.
O segundo ciclo de reformas chinês, que continua até hoje, visa a uma globalização controlada: uma economia de mercado, integrada ao mundo, mas com características próprias.
Um dos eixos centrais desse novo modelo chinês é a intensa e desenfreada competição. Até os burocratas competem entre si: gestores locais sobem na hierarquia se atingirem metas e baterem os de outras regiões.
Claro que essas metas não necessariamente representam o melhor para a sociedade, ou para os mais pobres, muitas vezes destituídos de suas terras e pertences, mas ninguém nunca afirmou que competição só traz coisas boas.

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