Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Considerando as dificuldades de tanta gente com o aprendizado –com qualquer aprendizado–, no fundo é um verdadeiro milagre que, afinal, existam tão poucos analfabetos. Em tese, não é a coisa mais simples do mundo associar alguns risquinhos no papel a uma série nem sempre fixa de sons, e entender as regras de sua combinação.
Depois de um ou dois anos ""vá lá, três– até os menos talentosos aprendem a escrever palavras num papel. Nem precisam disso, com o teclado.
Quanto aos números, acho ainda mais maravilhoso. Crianças muito pequenas entendem depressa o seu caráter abstrato. Logo percebem –o que não é trivial– que a série de números é infinita.
Aí pelos quatro ou cinco anos, já brincam com a ideia de "infinito mais um", "infinitas vezes infinito" ou coisa parecida, sabendo que se trata de um jogo verbal.
O mais difícil, no fundo, está no básico –naquilo que nem sabemos direito como entrou na nossa cabeça. O resto (e em matemática mais do que em qualquer outra coisa) não passa, provavelmente, de mera consequência.
O que não consigo entender é como se gastam dez ou 12 anos na escola para aprender tão pouco.
Aula dos sete aos 18 anos, quatro horas por dia, cinco dias por semana, deveria ser suficiente para você virar astronauta, concertista internacional, grande enxadrista. E saem da escola pública sem conseguir fazer uma regra de três?
Como resultado de muito trabalho, entusiasmo e fé, uma escola no interior do Piauí conseguiu proezas na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Segundo reportagem publicada na Folha no último domingo (9/7), só um dos 25 alunos da escola estadual Augustinho Brandão, de Cocal dos Alves, não foi premiado na última competição. Já são 131 medalhas desde 2006.
O fato merece atenção por si só, é claro. Mas eu gostaria de destacar outra coisa, na verdade uma simples palavrinha.
Medalhas. Ganhei algumas na escola primária, porque estava num colégio muito antiquado, aqueles de uniforme com sapato preto e vigilantes que, no recreio, impediam as crianças de correr. Sopravam um apito.
Chamávamos as professoras de "dona Fulana", e a diretora, uma tal de dona Daisy (criei trauma com esse nome) poderia ter saído de um quadro de Toulouse-Lautrec, com as sobrancelhas reduzidas a dois risquinhos de lápis preto-azulado, os olhos fulminantes de uma "patronne" em casa de baixa reputação.
Os óculos escuros do diretor-geral do estabelecimento, com lentes marrons para combinar com o terno, eram daqueles capazes de dardejar para qualquer ângulo ao mesmo tempo, desde que baixo o bastante para encontrar a pequena vítima de seus caprichos.
Era apavorante. Um dia, ele entrou na sala de aula, o queixo primeiro, como Benito Mussolini. Todos sabíamos o que fazer: impunha-se levantar da carteira, em posição de sentido. O ato foi tão unânime e instantâneo que produziu um deslocamento de ar.
O papel que estava em cima da carteira de um aluno ao lado voou com isso, e caiu no chão. O pobre não sabia se devia agachar-se para pegar a folha ou manter-se imóvel. Inclinou apenas metade do corpo.
"Que foi isso?!", latiu o diretor. "É que caiu o papel", respondeu o garoto. "Hrrf", disse o carrasco, "não caiu sozinho!!" As coisas eram assim. Mas havia medalhas.
Nas outras escolas que frequentei, não se usava uniforme, tudo era mais razoável, chamávamos os professores de "você" e, naturalmente, qualquer ideia de competição estava abolida.
Desconfio que se andou errando um bocado neste último aspecto. A imprensa dá cada vez mais destaque à Olimpíada de Matemática, o que é sinal de alguma mudança, mas o fato é que entrou em desuso o princípio básico de premiar o aluno que vai bem.
É difícil que algo funcione sem um sistema de recompensas e de estímulos. São mínimos os prêmios reservados aos bons alunos na escola contemporânea. No máximo, ele se livra de recuperações e aborrecimentos em família.
Mas não sei de presentes: um computador, um livro, uma chuteira que seja –nada. Vou além, e proponho dinheiro vivo.
O aluno –qualquer aluno– é um escravo. Obrigam-no a estudar, sem que receba um tostão por isso. Passam-se 12 anos, e não aprendeu quase nada. Por que deveria?
A escola é das coisas mais ineficientes que conheço. De professores, nem é preciso falar. Mas alunos também mereceriam recompensa.
Depois de um ou dois anos ""vá lá, três– até os menos talentosos aprendem a escrever palavras num papel. Nem precisam disso, com o teclado.
Quanto aos números, acho ainda mais maravilhoso. Crianças muito pequenas entendem depressa o seu caráter abstrato. Logo percebem –o que não é trivial– que a série de números é infinita.
Aí pelos quatro ou cinco anos, já brincam com a ideia de "infinito mais um", "infinitas vezes infinito" ou coisa parecida, sabendo que se trata de um jogo verbal.
O mais difícil, no fundo, está no básico –naquilo que nem sabemos direito como entrou na nossa cabeça. O resto (e em matemática mais do que em qualquer outra coisa) não passa, provavelmente, de mera consequência.
O que não consigo entender é como se gastam dez ou 12 anos na escola para aprender tão pouco.
Aula dos sete aos 18 anos, quatro horas por dia, cinco dias por semana, deveria ser suficiente para você virar astronauta, concertista internacional, grande enxadrista. E saem da escola pública sem conseguir fazer uma regra de três?
Como resultado de muito trabalho, entusiasmo e fé, uma escola no interior do Piauí conseguiu proezas na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. Segundo reportagem publicada na Folha no último domingo (9/7), só um dos 25 alunos da escola estadual Augustinho Brandão, de Cocal dos Alves, não foi premiado na última competição. Já são 131 medalhas desde 2006.
O fato merece atenção por si só, é claro. Mas eu gostaria de destacar outra coisa, na verdade uma simples palavrinha.
Medalhas. Ganhei algumas na escola primária, porque estava num colégio muito antiquado, aqueles de uniforme com sapato preto e vigilantes que, no recreio, impediam as crianças de correr. Sopravam um apito.
Chamávamos as professoras de "dona Fulana", e a diretora, uma tal de dona Daisy (criei trauma com esse nome) poderia ter saído de um quadro de Toulouse-Lautrec, com as sobrancelhas reduzidas a dois risquinhos de lápis preto-azulado, os olhos fulminantes de uma "patronne" em casa de baixa reputação.
Os óculos escuros do diretor-geral do estabelecimento, com lentes marrons para combinar com o terno, eram daqueles capazes de dardejar para qualquer ângulo ao mesmo tempo, desde que baixo o bastante para encontrar a pequena vítima de seus caprichos.
Era apavorante. Um dia, ele entrou na sala de aula, o queixo primeiro, como Benito Mussolini. Todos sabíamos o que fazer: impunha-se levantar da carteira, em posição de sentido. O ato foi tão unânime e instantâneo que produziu um deslocamento de ar.
O papel que estava em cima da carteira de um aluno ao lado voou com isso, e caiu no chão. O pobre não sabia se devia agachar-se para pegar a folha ou manter-se imóvel. Inclinou apenas metade do corpo.
"Que foi isso?!", latiu o diretor. "É que caiu o papel", respondeu o garoto. "Hrrf", disse o carrasco, "não caiu sozinho!!" As coisas eram assim. Mas havia medalhas.
Nas outras escolas que frequentei, não se usava uniforme, tudo era mais razoável, chamávamos os professores de "você" e, naturalmente, qualquer ideia de competição estava abolida.
Desconfio que se andou errando um bocado neste último aspecto. A imprensa dá cada vez mais destaque à Olimpíada de Matemática, o que é sinal de alguma mudança, mas o fato é que entrou em desuso o princípio básico de premiar o aluno que vai bem.
É difícil que algo funcione sem um sistema de recompensas e de estímulos. São mínimos os prêmios reservados aos bons alunos na escola contemporânea. No máximo, ele se livra de recuperações e aborrecimentos em família.
Mas não sei de presentes: um computador, um livro, uma chuteira que seja –nada. Vou além, e proponho dinheiro vivo.
O aluno –qualquer aluno– é um escravo. Obrigam-no a estudar, sem que receba um tostão por isso. Passam-se 12 anos, e não aprendeu quase nada. Por que deveria?
A escola é das coisas mais ineficientes que conheço. De professores, nem é preciso falar. Mas alunos também mereceriam recompensa.
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