22 de novembro de 2017

Outra forma de escravidão, Cristovam Buarque

JORNAL CORREIO BRAZILIENSE, EM 21/11/2017
 


Senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Em uma entrevista publicada em outubro de 2012, o jogador brasileiro de futebol Raí falou com satisfação que, durante
 o tempo em que jogou no Paris Saint Germain, na França, a filha dele frequentava a mesma escola de altíssima
qualidade que a filha da empregada. Naquela ocasião, Raí se perguntou se não seria possível, aqui também, o filho do
trabalhador estudar na mesma escola que o filho do patrão. E mais: o que devemos fazer para que essa se torne a
realidade no nosso país, como ocorre na França e em outros lugares do mundo em que a economia cresce com plena
 estabilidade social? Por que ainda não fomos capazes de fazer isso?
O futuro de cada país decorre da formação de seus cidadãos, da capacidade de usar o potencial de seus cérebros. No
 Brasil, não haverá futuro se continuarmos a desprezar a formação intelectual de nossas crianças até a idade adulta. Não é difícil supor o que pode acontecer: mais uma vez ficaremos para trás entre os maiores países, como ocorreu há alguns séculos, quando insistimos no
absurdo da escravidão, mantendo a desigualdade e impedindo o país de usar o potencial do trabalho livre de cada
 brasileiro por mais de trezentos e cinquenta anos.
Dos mais de 3 milhões de brasileiros que nasceram em 1995, todos agora com 22 anos, no máximo mil estão
caminhando para se tornarem bons cientistas, filósofos, escritores, em nível internacional. E desses, uma boa parte
está emigrando para desenvolver a ciência e a tecnologia em outros países.
Sem educação de qualidade para todos, não teremos o futuro de produtividade na economia que permita a necessária
riqueza para sair da pobreza nem o potencial de inovação capaz de dar ao Brasil a competitividade necessária para
enfrentar a globalização. Sem educação com a mesma qualidade para todos, desperdiçaremos cérebros e mantendo a
vergonha da desigualdade social que nos caracteriza, desde os tempos da escravidão, pela cor da pele, e agora a
escravidão pela ausência de educação.
Para fazer a educação ser de alta qualidade e igual para todos, basta uma carreira nacional do magistério
suficientemente bem remunerada para atrair os melhores jovens para esse trabalho, exigindo deles dedicação exclusiva
e avaliação de desempenho. Esses professores e seus alunos devem dispor de escolas com belos e confortáveis prédios,
 os mais novos equipamentos culturais, esportivos e tecnológicos, com horário integral em todas elas. É possível que isso ocorra aqui tanto quanto foi possível na França, tal como Raí foi testemunha.
O Brasil está amarrado na falta de educação para todos e isso decorre da falta de indignação com nosso atraso
educacional em relação a outros países e com a desigualdade na oferta de vagas às nossas crianças, conforme a renda
de suas famílias. Ainda não nos desamarramos porque não valorizamos o conhecimento. Preferimos a produção e a
renda, sem percebermos que a verdadeira riqueza depende do conhecimento. Não olhamos para frente, em sintonia
com o “espírito do tempo” — demoramos a fazer a abolição da escravatura e agora demoramos a entender que negar a
educação é a forma de escravizar quem não a recebe e de atrasar toda a nação, que sofre as consequências por não
aplicar o conhecimento.
Por isso, mantivemos a escravidão por quase 70 anos, depois da independência, e estamos há mais de 100, desde a
República, sem fazermos o que precisamos para ter uma educação boa para todos, como Raí viu na França.

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