Veículo: CORREIO BRAZILIENSE - DF
Editoria: OPINIÃO
Tipo: Artigo
Data: 19/01/2016
Página: A11
Assunto: UNB, PROFESSORES
CRISTOVAM BUARQUEProfessor emérito da UnB e senador pelo PDT-DF
Alguns livros ensinam, outros dão prazer, uns poucos ensinam prazerosamente. O viés academicista tem produzido livros de qualidade, sem capacidade de encantar o leitor. Os acadêmicos fizeram opção pelo rigor sacrificando o prazer da leitura, enquanto o mercado sacrificava a qualidade acadêmica para conseguir vender mais. De vez em quando, porém, descobrimos livros que trazem de volta o rigor acadêmico com perfeição literária.
Um deles é Flores, Votos e Balas - O Movimento Abolicionista Brasileiro 1968-1988, publicado, no ano passado, pela Companhia das Letras, da professora Angela Alonso, da USP e do Cebrap. Em pouco mais de 500 páginas, ela descreve como movimentos sociais e atividades parlamentares se articularam, com êxito, para realizar o que parecia impossível: o fim do sistema escravocrata que caracterizava nossa história desde o início, como se fosse fato permanente. Angela Alonso escreveu epopeia que entusiasma do princípio ao fim, pelo lindo texto estruturado com seriedade e amplitude de informações.
Com maestria, ela desenvolve a narrativa dos 20 anos decisivos para o Brasil, em quatro figuras maiores de nossa história: Rebouças, Gama, Patrocínio, Nabuco e centenas de personagens que se movem como se estivessem entrelaçados por roteiro que o leitor vai descobrindo à medida que a leitura avança. As cores descritas, os detalhes citados, os comentários surpreendentes fazem lembrar livros clássicos da literatura histórica, ensaios ou novelas.
O livro avança paulatina, mas também eletrizantemente até o desenlace com a assinatura da Lei Áurea. Todos sabem o fim, mesmo assim, o texto passa surpresa em cada página, porque a autora transmite a dificuldade com que o processo da abolição avançou, mostra as reações e os problemas que impediam a marcha ao progresso humano do fim da escravidão. A leitura se passa como mergulho na história do Brasil, na biografia de cada personagem e nas relações entre eles e os anônimos, escravos, escravocratas ou abolicionistas.
Ao ler, mesmo quem conhece a história deslumbra-se com os detalhes e a coreografia do processo. O mais importante, porém, é a reflexão que o livro apresenta ao nos trazer a questão de como foi possível que aqueles quatro brasileiros, ao lado de milhares de outros, especialmente heróis escravos, conseguiram fazer andar a força da abolição, transformando a ideia utópica de alguns em lei libertária nacional.
O livro mostra que o papel deles foi usar os meios disponíveis para convencer o Brasil de que a escravidão representava, ao mesmo tempo, falta de compaixão, negação do direito e entrave ao progresso; e articular a população nas ruas e os políticos no parlamento para a necessidade de vencer esses três elementos que impediam a construção de nação eficiente, justa, progressiva, decente. Angela Alonso percebeu e descreve com perfeição como eles conseguiram. O livro nos emociona ao ver como conseguiram.
Mas um grande livro nos deixa perguntas. Ao ler Flores, votos e balas, perguntamo-nos como ainda no século 19, com os poucos recursos de comunicação e mobilização, eles conseguiram fazer a Lei Áurea ser realidade, enquanto que, em pleno século 21, não estamos conseguindo concluir a abolição porque ainda não definimos os instrumentos legais que assegurem escola de qualidade para todos os brasileiros. Aceitamos como natural que as crianças continuem com um carimbo na testa indicando se têm ou não direito à educação com qualidade. O que antes se fazia pela cor da pele indicando escravidão, salvo as exceções de poucos alforriados, agora se faz pela pobreza, deixando as crianças pobres em escolas sem qualidade. Hoje, a Lei Áurea deveria garantir escola com a mesma qualidade para os filhos dos pobres ou dos ricos, dos trabalhadores ou dos patrões.
Tanto quanto a escravidão no século 19, a desigualdade na oferta da educação deveria despertar compaixão com os excluídos. A falta de escola com qualidade deveria ser vista como ilegalidade diante das leis e da Constituição. O desperdício de cérebros percebido como impedimento ao progresso. Mas continuamos sem compaixão, na ilegalidade e com o progresso interrompido. Angela Alonso, além de nos ensinar e deslumbrar, nos deixa com uma pergunta: onde estão nossos Patrocínio, Gama, Rebouças e Nabuco, e como repetir para a educação a epopeia deles pela abolição?
Alguns livros ensinam, outros dão prazer, uns poucos ensinam prazerosamente. O viés academicista tem produzido livros de qualidade, sem capacidade de encantar o leitor. Os acadêmicos fizeram opção pelo rigor sacrificando o prazer da leitura, enquanto o mercado sacrificava a qualidade acadêmica para conseguir vender mais. De vez em quando, porém, descobrimos livros que trazem de volta o rigor acadêmico com perfeição literária.
Um deles é Flores, Votos e Balas - O Movimento Abolicionista Brasileiro 1968-1988, publicado, no ano passado, pela Companhia das Letras, da professora Angela Alonso, da USP e do Cebrap. Em pouco mais de 500 páginas, ela descreve como movimentos sociais e atividades parlamentares se articularam, com êxito, para realizar o que parecia impossível: o fim do sistema escravocrata que caracterizava nossa história desde o início, como se fosse fato permanente. Angela Alonso escreveu epopeia que entusiasma do princípio ao fim, pelo lindo texto estruturado com seriedade e amplitude de informações.
Com maestria, ela desenvolve a narrativa dos 20 anos decisivos para o Brasil, em quatro figuras maiores de nossa história: Rebouças, Gama, Patrocínio, Nabuco e centenas de personagens que se movem como se estivessem entrelaçados por roteiro que o leitor vai descobrindo à medida que a leitura avança. As cores descritas, os detalhes citados, os comentários surpreendentes fazem lembrar livros clássicos da literatura histórica, ensaios ou novelas.
O livro avança paulatina, mas também eletrizantemente até o desenlace com a assinatura da Lei Áurea. Todos sabem o fim, mesmo assim, o texto passa surpresa em cada página, porque a autora transmite a dificuldade com que o processo da abolição avançou, mostra as reações e os problemas que impediam a marcha ao progresso humano do fim da escravidão. A leitura se passa como mergulho na história do Brasil, na biografia de cada personagem e nas relações entre eles e os anônimos, escravos, escravocratas ou abolicionistas.
Ao ler, mesmo quem conhece a história deslumbra-se com os detalhes e a coreografia do processo. O mais importante, porém, é a reflexão que o livro apresenta ao nos trazer a questão de como foi possível que aqueles quatro brasileiros, ao lado de milhares de outros, especialmente heróis escravos, conseguiram fazer andar a força da abolição, transformando a ideia utópica de alguns em lei libertária nacional.
O livro mostra que o papel deles foi usar os meios disponíveis para convencer o Brasil de que a escravidão representava, ao mesmo tempo, falta de compaixão, negação do direito e entrave ao progresso; e articular a população nas ruas e os políticos no parlamento para a necessidade de vencer esses três elementos que impediam a construção de nação eficiente, justa, progressiva, decente. Angela Alonso percebeu e descreve com perfeição como eles conseguiram. O livro nos emociona ao ver como conseguiram.
Mas um grande livro nos deixa perguntas. Ao ler Flores, votos e balas, perguntamo-nos como ainda no século 19, com os poucos recursos de comunicação e mobilização, eles conseguiram fazer a Lei Áurea ser realidade, enquanto que, em pleno século 21, não estamos conseguindo concluir a abolição porque ainda não definimos os instrumentos legais que assegurem escola de qualidade para todos os brasileiros. Aceitamos como natural que as crianças continuem com um carimbo na testa indicando se têm ou não direito à educação com qualidade. O que antes se fazia pela cor da pele indicando escravidão, salvo as exceções de poucos alforriados, agora se faz pela pobreza, deixando as crianças pobres em escolas sem qualidade. Hoje, a Lei Áurea deveria garantir escola com a mesma qualidade para os filhos dos pobres ou dos ricos, dos trabalhadores ou dos patrões.
Tanto quanto a escravidão no século 19, a desigualdade na oferta da educação deveria despertar compaixão com os excluídos. A falta de escola com qualidade deveria ser vista como ilegalidade diante das leis e da Constituição. O desperdício de cérebros percebido como impedimento ao progresso. Mas continuamos sem compaixão, na ilegalidade e com o progresso interrompido. Angela Alonso, além de nos ensinar e deslumbrar, nos deixa com uma pergunta: onde estão nossos Patrocínio, Gama, Rebouças e Nabuco, e como repetir para a educação a epopeia deles pela abolição?
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