18 de março de 2016

Eduardo Gianetti: economista e escritor fala sobre atitude "passiva" de jovens brasileiros diante do conhecimento

Março/2016
Entrevista com Eduardo Giannetti | Edição 227, Revista Educação



Para ele, a universalização do ensino fundamental ainda não ocorreu de fato, pois os estudantes não conseguem se apropriar dos conhecimentos que deveriam ter


Mariana Ezenwabasili
 
© Bel Pedrosa/Divulgação
Eduardo Giannetti da Fonseca: o importante é saber se o aluno adquiriu a capacidade de pensar

A educação plena está relacionada ao empenho dos alunos em estudar para além da sala de aula, à garantia de condições sociais básicas para o desenvolvimento cognitivo e ao apoio familiar para o aprendizado. Esses são os principais pontos defendidos pelo economista Eduardo Giannetti da Fonseca em entrevista para a Educação, concedida em São Paulo.

Graduado em ciências sociais e em economia pela Universidade de São Paulo (USP), o escritor mineiro fez doutorado na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde lecionou entre 1984 e 1987. Também deu aulas de disciplinas ligadas à história do pensamento econômico na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, entre 1988 e 2000, e no Insper entre 2001 e 2014. Atualmente, está escrevendo um novo livro a ser lançado ainda este ano.

Na entrevista a seguir, Giannetti faz uma análise do que julga ser uma atitude "passiva" dos estudantes brasileiros frente ao ensino em todos os níveis, aborda as consequências da "desigualdade de condições iniciais" para o acesso à educação e fala sobre os desafios para o aumento do financiamento educacional no longo prazo frente aos percalços enfrentados em meio à atual crise econômica.

Como observa a relação dos jovens brasileiros com a educação?
Os jovens brasileiros, infelizmente - e isso vem da família, da distorção da nossa formação -, têm uma visão muito "credencialista" da educação. O que a pessoa quer é o certificado, o diploma que dá a ela uma condição de ascensão profissional. Essa é uma desfiguração do sentido da educação. Isso, às vezes, se dá em função de escolas que se prestam a entregar um pedaço de papel sem o lastro da formação e da educação que devia estar por trás disso. Estamos passando por uma inflação de certificados educacionais sem lastro no Brasil. É um equívoco para o jovem, e é uma falha muito grave do sistema educacional quando ele se presta a atender a essa demanda espúria, superficial, por um certificado que não tem uma realidade por trás. Uma boa educação não é assistir displicentemente a algumas aulas, repetir na prova o que professor falou em sala e pagar a mensalidade no fim do mês. Isso não tem nada a ver com a educação. O jovem estudante deveria ser alertado para o seguinte: se ele está demandando efetivamente educação, isso implica trabalho, compromisso, dedicação. Mas, por vezes, prevalece a lei do menor esforço dos dois lados: uns fingem que ensinam e os outros fingem que aprendem e tudo termina em diploma. Esse é o pior dos mundos.

O que explica esse tipo de relação?
Houve uma certa acomodação da sociedade em ter uma visão ritualística do que é educação. O sistema educacional brasileiro é muito ritualizado. O aluno acha que se reproduzir bem na prova o que foi dado em aula está tudo resolvido, mas, assim, nada está resolvido. Uma resposta memorizada não tem valor nenhum, mesmo correta. Como professor, o que me importa é saber se o estudante adquiriu a capacidade de pensar, de fazer uma pergunta, elaborar uma dúvida pertinente, de levantar uma hipótese. E o aluno brasileiro não aprende a fazer isso, é totalmente acomodado. Mas não é culpa dele. Ele aprende a fazer isso.

Como reverter essa lógica?
Richard Feynman, grande físico americano que ganhou o Prêmio Nobel [em 1965], veio dar aula no Brasil na década de 1950 na então Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele escreveu memórias contando como havia sido essa experiência, e disse basicamente o seguinte: se você pedir ao aluno brasileiro o que está no livro, no texto, ele é um dos melhores estudantes do mundo. Mas se você pedir em uma prova alguma coisa que seja um pouco diferente do que está no livro, ele é um dos piores alunos do mundo, porque não sabe pensar. Ele colocou o dedo em um problema básico da educação brasileira: é uma atitude passiva diante do conhecimento. Isso aí é, no fundo, um conluio entre o professor e o aluno, facilita para os dois: é cômodo para o professor ficar estritamente no que está lá no texto e é muito cômodo para o aluno saber que se reproduzir o que está no texto estará bom, obterá o diploma que ele quer. É preciso romper esse pacto. Precisamos ter algum sistema de recuperação do lastro dos certificados educacionais. O que quero dizer com isso? O Brasil teve uma inflação de credenciais educacionais, tem milhões de crianças que supostamente terminaram o ensino fundamental, mas não aprenderam ou não constituíram as competências e as habilidades associadas a esse grau. A mesma coisa no ensino médio e a mesma coisa no ensino superior. É uma inflação de credenciais sem lastro. Deveria ser criada alguma exigência para o aluno mostrar que adquiriu de fato o que se espera de alguém que fez um determinado ciclo e terminou.

O Enem não cumpre essa função?
Não está funcionando assim. Pode até caminhar para isso, mas o Enem não confere o grau, ele dá uma vantagem no acesso ao ensino superior. Uma pessoa que vai muito mal em um exame desse tipo não tem de ganhar o certificado de grau correspondente, porque, caso ganhe, aquilo ali não tem realidade. E não é bom para aquele jovem achar que tem o que não tem. É preciso recuperar o valor, o lastro das credenciais educacionais e, paralelamente, é preciso formar os professores para que isso de fato aconteça. Essa é uma observação que algumas pessoas relutam muito em aceitar.

Como garantir amplo acesso à Educação Básica e qualidade de ensino?
Os Estados Unidos universalizaram o ensino fundamental no final do século 19. O Brasil universalizou o acesso ao ensino fundamental no final do século 20, com um século de atraso [com relação aos EUA], durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas muito do que se passa como ensino fundamental no Brasil infelizmente não condiz com as competências, as habilidades e os conhecimentos correspondentes ao que deveria ser o ensino fundamental. Preciso dizer isso de maneira bem concreta: tem muita gente que termina o ensino fundamental, e mesmo o ensino médio, e não está plenamente alfabetizada, são analfabetos funcionais. Isso é uma tremenda injustiça com as crianças e jovens. Nessa etapa da formação educacional, eles precisam receber aquilo a que têm direito, que é uma alfabetização plena; têm de saber ler um texto e interpretar, fazer cálculos. Não adianta terminar o ensino médio e achar que está tudo bonitinho porque se formou. É muito doloroso saber que, embora tenhamos nominalmente universalizado o acesso ao ensino fundamental, na realidade isso não aconteceu ainda. Teremos universalizado o ensino fundamental quando todos os alunos que passaram por ele tiverem tido uma alfabetização plena, terminarem o ciclo sabendo calcular, fazer fração, fazer o mínimo do currículo essencial.

O que faltou para reverter esse quadro nas demais gestões políticas?
Não preparamos os nossos professores para tornar a sala de aula um lugar de efetiva formação humana e de aprendizado básico. Outro dia, eu estava em Minas Gerais, onde vou escrever os meus livros, e comecei a conversar com um menino que estava saindo da escola. Perguntei a ele: "quanto é três vezes cinco?". Ele pensou um minutinho e falou "quinze". Pensei: "que legal, ele aprendeu mesmo", e era aluno de uma escola pública no interior de Minas. Daí falei "vou te fazer outra pergunta: quanto é cinco vezes três?", e ele disse "não sei, porque a professora não chegou lá [na tabuada do cinco] ainda". No fim, ele me disse que aprende tabuada com a professora recitando e eles, os alunos, repetindo. Ou seja, aprendeu o som da tabuada, e não a operação da tabuada. Isso não é educação. O que quero dizer com isso? Falta uma melhor formação docente e uma mudança na forma de formação dos professores. Falta entender que a sala de aula não é lugar para um ritual vazio. O professor brasileiro costuma dar aula de costas para o aluno, escrevendo na lousa. Não vira para os estudantes e pergunta algo que provoque o pensamento deles.

Na primeira maior crise da última década, a educação foi a área com cortes mais significativos no Brasil. Nesse cenário, a meta de 10% do PIB para a área até 2024 é realista?
Não acho a meta realista e estranho que o Plano Nacional da Educação se preocupe tanto com o gasto e tão pouco com a qualidade. Parece um pleito de reivindicações e não um compromisso com o acesso a uma educação de qualidade para o universo dos jovens e crianças brasileiras. As finanças públicas no Brasil, neste momento, não permitem isso, infelizmente. Logicamente, acho que temos de gastar mais com a educação. Quanto mais pudermos fazer nessa direção, melhor. Mas, para isso, é preciso haver uma contrapartida efetiva de resultado educacional. A coisa mais fácil do mundo é gastar mais, sem compromisso nenhum com o resultado educacional. E o Brasil está fazendo isso há muito tempo. Com o gasto, tem de vir uma cobrança, a melhoria da qualidade. E o momento certo de fazer essa cobrança é quando se aumenta a verba para a área.

Qual a importância da família, enquanto núcleo, na formação plena dos sujeitos?
Quando vou a Minas Gerais, tenho acesso a grupos sociais com os quais não convivo no meu dia a dia em São Paulo. Uma vez, vi uma situação lá em Minas de uma criança do ensino fundamental que copia tudo da lousa em sala de aula, e quando vai para casa encontra um ambiente completamente alheio à educação formal. Essa criança não tem nenhuma mesinha para fazer o dever de casa. Chega em seu lar, liga a televisão e fica completamente dispersa. Assim, ela está sendo prejudicada para o resto da vida devido à falta de uma estrutura mínima com relação à preocupação com os seus estudos. E, muitas vezes, os pais dessas crianças dão um duro danado, trabalham o dia inteiro, nunca souberam a importância que têm para um filho o cuidado, o acompanhamento e o interesse pela formação. Infelizmente, essa criança sofreu um infortúnio ao nascer numa situação dessas. Além disso, há um problema sério que persiste desde o período colonial: a falta da figura paterna na vida familiar brasileira. Isso significa que alguma coisa se perde. Não estou falando isso em um tom moralista; temos de entender que crianças que nascem em famílias completamente desestruturadas, muito desatentas à importância de uma certa dedicação desde cedo ao aprendizado e à formação, têm um dano.

Mesmo nessas condições, há meios de resgatar essa criança?
Temos de pegar essa criança em uma pré-escola o mais cedo possível, fazê-la aprender a se concentrar; aprender que se não fizer certas coisas na idade certa vai ficar prejudicada para o resto da vida, que é o que acontece. No caso da desorganização familiar, outras figuras, que não o próprio pai, podem substituir a figura paterna, a avó, o tio, um primo. Dada essa dificuldade da presença de pais responsáveis, as mulheres estão buscando alternativas, arranjos inovadores para ter um filho. Mas é importante fazer isso de uma maneira minimamente planejada, porque colocar uma criança no mundo sem nenhuma condição de proteger e de atender requisitos para uma boa educação constrói um adulto com dificuldades.

A condição social determina as possibilidades de acesso ao ensino e continuidade dos estudos?
No Brasil, a condição social da família de uma pessoa é tremendamente determinante da trajetória socioeconômica dela. Esse é o sinal mais eloquente da nossa desigualdade. Uma sociedade equânime e equitativa seria uma sociedade em que a condição social da família não tivesse esse peso determinante.

E como podemos chegar a isso?
Com saneamento básico, transporte público e ensino fundamental de qualidade; com condições que permitam a cada pessoa desenvolver o seu potencial e, naturalmente, diferenciar-se. É horrível estar em uma sociedade igualitária no sentido de que o resultado de todos é o mesmo sempre. As pessoas são diferentes e, felizmente, não dão o mesmo valor para o sucesso econômico. Tem gente que está disposta a sacrificar muito da sua vida para ganhar dinheiro, tem gente que não. Há pessoas que preferem ser artistas, cientistas, boêmias. Essas possibilidades também são um direito, mas todos os jovens e crianças deveriam ter a oportunidade de escolher uma trajetória considerando a plenitude do que podem chegar a ser como sujeitos. O Brasil está muito longe de garantir isso, e, assim, a condição da família acaba sendo determinante. Há jovens que nascem com a vida já resolvida quase que independentemente do que venham a fazer, e há outros que nascem com a vida perdida independentemente do que aconteça também. O que me agride como cidadão é a desigualdade de condições iniciais. As crianças brasileiras de famílias que moram onde não há coleta de esgoto podem pegar doenças na primeira infância que irão prejudicar a formação do cérebro para um aprendizado adequado na juventude.

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