11 de julho de 2016

As leituras da sociedade que elege pessoas "matáveis", Julio Jacobo Waiselfizs

Jornal de HojePÁGINAS AZUIS

 11/07/2016

Há 18 anos, o pesquisador Julio Jacobo elabora o mapa da violência e revela números que abrem espaço para a análise da sociedade e da vitimização dos jovens da periferia


Thaís Britocotidiano@opovo.com.br
Evilázio Bezerraevilazio@opovo.com.br

O argentino Julio Jacobo Waiselfizs é sociólogo formado pela Universidade de Buenos Aires, com mestrado em Planejamento Educacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde 1998, elabora a série de publicações Mapa da Violência, com focos diversificados em juventudes, armas de fogo, acidentes de trânsito e homicídios de mulheres. Atualmente, coordena a Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Publicou mais de 20 livros, como Mapa das Desigualdades Digitais e Juventude, Violência e Cidadania.

Não sou ideólogo da violência, trabalho com dados”, trata de advertir Julio Jacobo antes de iniciar as reflexões sobre um Brasil de deficiências estruturais e culturais no combate à criminalidade. No entanto, a leitura dos óbitos violentos nos últimos 18 anos permitiu chegar a uma conclusão: há parcelas da população cuja morte não causa grandes choques para a sociedade brasileira. Notadamente, aquelas mais pobres, de cor negra e em situações de vulnerabilidade. É também da leitura de dados compilados que o sociólogo aponta a participação das armas de fogo na maioria dos homicídios e a falência da campanha do desarmamento no Brasil.

O POVO - Do 20° lugar no ranking da violência em 2003, o Ceará subiu para o 3° lugar no número de homicídios em 2013. O que explica esse crescimento?
JULIO JACOBO WAISELFIZS - Há fatores atrativos da violência e repulsivos da violência. Uma boa Polícia, que dá confiança à população, para quem se denuncia porque se confia na atuação, é fator repulsivo da criminalidade. Falta de policiamento, greves de policiais constantes são fatores atrativos. Esses fatores estão em nível nacional e nível local. Em nível nacional, o que aconteceu? Na virada do século XXI se implanta, com o ministro (da Justiça) José Gregori, da época de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Plano Nacional de Segurança Pública. Junto com ele, o primeiro Fundo Nacional de Segurança Pública. Grana. Para mandar àqueles estados mais violentos. O ministro mandou me chamar na época, eu trabalhava na Unesco e era o único a ter um mapa da violência. Ele queria ver para quem mandar dinheiro, em outras palavras. Não queria mandar ao estado que não precisava. Serviu principalmente para balizar repasse de recursos. Não digo que 100% dos estados seguiam o mapa, mas uns 50%. Em 1998, qual era o ranking da violência? Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Roraima, São Paulo, em ordem decrescente. Os nove estados mais violentos que receberam recursos do fundo para melhorar sua Polícia e outras coisas tiveram queda nos homicídios. Todos os menos violentos aumentaram (o índice de homicídios).

OP - O dinheiro foi o diferencial.
JACOBO - O que os dados mostram? Onde teve melhora de Polícia, criou-se um fator repulsivo. São Paulo, por exemplo. Eu tenho um Mapa da Violência lá porque queria saber por que houve queda. Primeiro, há uma profunda estruturação do aparelho de segurança pública. Implanta-se um Infocrim, sistema georreferencial de boletins de ocorrência. É para saber: onde tem mais roubo de carro? Às sete da manhã, na rua tal, no cruzamento tal. E você decide: vamos aumentar o policiamento aqui neste horário. Segundo, tiraram a carceragem da delegacia de Polícia. Porque Polícia tem de fazer o trabalho de Polícia, não o de carcereiro. Em alguns locais, implantaram boletim de ocorrência pela Internet. Era a época de grandes sequestros de empresários. Haviam sequestrado antes o Abílio Diniz (do grupo Pão de Açúcar, em 1989). Uma filha do Sílvio Santos (em 2001). Os empresários paulistas começaram a se apavorar. E se juntaram nada mais nada menos que a Federação de Indústrias de São Paulo, a Federação do Comércio de São Paulo, a Federação dos Bancos de São Paulo, a Federação de Transportes de São Paulo, a USP, Rede Globo. Grana. Criaram o Instituto São Paulo contra a Violência. Primeira atitude foi fazer o Fórum Metropolitano de Segurança Pública, chamando 44 prefeitos. Não foi o “João da Silva” que organizou, era a imprensa e o poder. Implantaram várias medidas, como Infocrim e Fotocrim nos municípios. A Guarda Municipal armada. Aí fizeram a Escola da Família. Havia o dado de que o nível de criminalidade e de homicídio aumentava no fim de semana, então pegaram jovens, que eram as principais vítimas, e abriram as escolas no fim de semana. Traziam cultura, lazer, arte, capoeira, computador. O jovem começou a sair da rua. Foram vários fatores. Não era como planos que tinham nome, como o Pacto pela Vida em Pernambuco ou as Polícias Pacificadoras no Rio de Janeiro. As taxas de homicídio caíram barbaramente. São Paulo era o quinto estado em violência, agora está entre os últimos. É uma queda impressionante. Esse foi o primeiro fator, o do investimento nestes estados.

OP - Fora não ter recebido esse tipo de investimento, que outros fatores podem haver pesado negativamente para o Ceará
JACOBO - Um segundo fator é uma mudança no modelo econômico brasileiro. Até a década de 1990, a economia estava concentrada nas regiões metropolitanas. Com altos impostos para quem quisesse implantar indústria, começou a haver a guerra fiscal dos municípios. Era dizer assim: “Se você implantar indústria aqui, eu dou isenção por dez anos, dou um pedaço de terra de brinde”. Aí a indústria vai saindo da região metropolitana. Começam a surgir os novos polos de desenvolvimento. Surge Camaçari (Bahia), Ananindeua (Pará), Suape (Pernambuco). No Ceará, vários polos surgem com as indústrias. Esses polos atraem população, investimentos e também criminalidade. Há deslocamento da violência. Um exemplo foi Maceió, em Alagoas. Em 2007, houve greve de Polícia durante sete meses. Sabe o que é uma capital sem Polícia? Era um festival da bandidagem. Nunca mais retomaram o controle, porque apareceram novas condições da violência para uma antiga estrutura de Polícia.

OP - Como foi este descompasso entre a criminalidade e a Polícia?
JACOBO - Houve época em que o bandido tinha nome, sobrenome e endereço certo. Roubaram um banco? Foi João da Silva ou outro, um dos dois. Era o modus operandi da Polícia. Agora vieram grandes organizações criminosas. A Polícia não está preparada tecnicamente ou humanamente para enfrentar isto. De novo, falamos de um festival da bandidagem. Aqui aconteceu um pouco isso. A Polícia não dá conta. Seria diferente se os criminosos encontrassem uma Polícia bem preparada. Mas como preparar a Polícia se não existe bandidagem (na década de 1990)? O estado não vai investir em Polícia, só vai investir quando tiver demanda. Não havia investimentos em segurança. Com isso, a segurança não estava preparada para essas novas formas de criminalidade. Já são as grandes organizações que sabem quando o município não tem policiamento. Elas vão nesses municípios onde sabem que há um vazio do aparelho do Estado. Há então o deslocamento dos polos de violência.

OP - Os pequenos municípios são mais atingidos por esta interiorização da violência?
JACOBO - Isso é visto na comparação dos dados de 1980 até 2012. De 1980 ao ano 2000 há crescimento da violência nos grandes municípios. Nas cidades com mais de 500 mil habitantes, as taxas de homicídio (por 100 mil habitantes) cresceram 132%. Nesta época, as taxas dos municípios pequenos cresciam pouca coisa. O polo da violência estava nas grandes cidades. De 2000 a 2012, esse índice cai nas grandes capitais. Houve 24,7% de queda. O índice permanece estagnado nos municípios de 200 mil a 500 mil habitantes. Cresce um pouco nas cidades de 100 mil a 200 mil habitantes. Onde cresce muito? Nos municípios de 5 mil a 100 mil habitantes. Com pico nas cidades de 10 mil a 50 mil habitantes. São os pequenos e médios municípios do Interior, que têm um delegado de Polícia e dois policiais, por exemplo. De repente, chega o grande bando de carro, toma de refém a mulher do delegado, o gerente do banco. É o que acontece hoje todos os dias. Essas pequenas estruturas não estão preparadas para isso. Não foram preparadas por muito tempo, e o Estado precisa trabalhar com inteligência. Ele não vai colocar um policial em cada agência bancária. Imagine a quantidade! Não, são outras formas de trabalho: inteligência criminal, combate a grandes organizações criminosas. E não temos muita polícia técnica, polícia inteligente.

OP - E quanto às vítimas destes homicídios? O senhor apresenta a tese de que a sociedade hoje considera dois perfis de indivíduos, os matáveis e os não-matáveis. Quem são esses matáveis?
JACOBO - Veja, em uma época, toda economia nacional trabalhava com a teoria do pleno emprego. Hoje, precisamos de um exército que se chama exército industrial de reserva para que, nos períodos de pico do capitalismo, haja mão de obra para as fábricas. É alguém capacitado que fica sem trabalho por dois, três anos. Mas, no momento em que há demanda de carros, a indústria de automóveis tem gente capacitada para trabalhar. É uma reserva que as empresas não pagam para ter, mas usam quando precisam. Isso é que os economistas falam, como o David Ricardo, o economista inglês. Isso significa que há uma equação de população necessária e população excedente. A população excedente, que não tem trabalho, pode ser de reserva ou pode ser massa marginal. Gente que nunca se inseriu no trabalho. A partir da década de 1980, no Brasil começa a haver esse tipo de gente. É essa massa excedente estruturalmente a massa matável. A estrutura não vai sentir muito se ela morre. E começa-se a criar uma ideologia de que a Justiça é lenta, de que não vai punir e de que um menino que vai preso vai sair amanhã pior, que a Justiça vai demorar horrores para acontecer… E se criam os grupos de extermínio ou milícias, como no Rio de Janeiro. Ou os autos de resistência (classificação para homicídios onde a vítima teria resistido a intervenção policial). Há vários projetos e estudos mostrando que as vítimas são como aquele menino que estava com uma máquina fotográfica na mão, foi confundido e levou quatro balas. Você ouve histórias de que um carro da Polícia arrasta um menino por 15 quadras. Parece que começa a haver mesmo gente matável. E praticamente nenhum dos crimes é punido. No Rio de Janeiro, há quatro ou cinco anos, as pessoas sabem que a polícia pacificadora matou aquele rapaz que era pedreiro (Amarildo Dias de Souza, desaparecido da Favela da Rocinha em julho de 2013, após ser levado por policiais militares). Começamos a ter consciência disso com o pedreiro Amarildo. Depois surgiram milhares de Amarildos. Vários projetos já foram aprovados, mas não se implementa o projeto para acabar com o auto de resistência. Ele é um homicídio que precisa ser pesquisado. Se for comprovado que este ato foi feito no cumprimento da lei, tudo bem. Mas não se pode ter o auto de resistência e não ser analisado. Cria-se a consciência de que existem pessoas matáveis tanto na Polícia como na população. Outro exemplo é quando uma mulher foi confundida em São Paulo com uma bruxa ou sequestradora (Fabiane Maria de Jesus, linchada na cidade de Guarujá em maio de 2014) e a mataram na rua. Depois que mataram, viram que não era aquilo que se disse dela. Aí diziam: “Ah, desculpa, me equivoquei”. Não só a polícia, é toda a estrutura da sociedade que está gerando a consciência da população matável. A justificativa? “Ah, o Judiciário não cumpre o seu dever”. São os killables, do inglês.

OP - Há uma maior comoção quando os crimes de violência chegam ao espaço dos não-matáveis? Seriam estes espaços as áreas nobres das cidades?
JACOBO - Exatamente. Essas pessoas não são matáveis. Os matáveis têm um perfil. É o menino de periferia urbana, negro, jovem, com baixo nível de escolaridade. Todos têm estas características. Pessoas que, de repente, cometem alguma agressão, uma transgressão, carregam uma trouxinha de maconha. Se não têm, é muito fácil colocar uma trouxinha onde não tem. Então, (o homicídio) se justifica. Agora, um menino de classe alta num carro Porsche de última moda está no lado dos não-matáveis. Primeiro porque o pai não vai deixar que seja matável. Vai mover céu e terra para que se encontre um culpado.

OP - O senhor mostra também que em 2003, ano em que foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, o crescimento do número de homicídios (de 4,7% desde 1980) no Brasil foi interrompido e seguido de queda. Mas olhando para 2014, este crescimento está sendo retomado. O que houve de falha para que os índices de homicídios voltem a subir?
JACOBO - Essa curva indica o primeiro ano onde foram recuperadas 470 mil armas de fogo em um ano. A partir disso, praticamente se abandonou a campanha do desarmamento. Em todos estes 14, 15 anos, a entrega de armas baixou para 150 mil em dez anos, enquanto em um ano foi de 470 mil. Isso marca um pouco a diferença. O que isso quer dizer? Que a população começou a se armar de novo. Não se proibiu a venda de armas, ela continua. O contrabando de armas também continua. A população está se rearmando. Tudo aquilo que se entregou já se perdeu. Um abandono por parte do Estado e da política do desarmamento. No Brasil, 75% dos homicídios são com revólveres. Percentual que ainda cresce ao longo do tempo.

OP - Há reação dos gestores municipais ao Mapa da Violência?
JACOBO - Uma deputada muito amiga minha chegou dizendo: “Você não quer vir pra Ilha de Itamaracá? É uma ilha linda, turística. Porque ela saiu em primeiro lugar do mapa em Pernambuco, e os vereadores queriam discutir com você o que fazer”. Quando cheguei, escutei uma conversa enquanto estava numa sala. As pessoas não sabiam quem eu era e as ouvi dizendo: “Esse filho da puta está originando a crise econômica daqui. Não temos mais turistas aqui, eles não querem vir”. O ambiente foi piorando. Atribuíram ao Mapa da Violência a decadência do turismo. Não era isso. A decadência vinha de outro polo turístico que atraía mais gente. Mas eles estavam lá, o secretário de Segurança Pública, todos eles fizeram uma audiência pública na Câmara (Municipal). E eles disseram, incluindo o prefeito, que eu tinha de me retratar publicamente porque estes homicídios que eu tinha contabilizado não tinham acontecido. Itamaracá é o único município do Brasil que tem três presídios. Realmente, havia acontecido mortes nos presídios e não na própria ilha, na zona turística. Então eu teria de me retratar publicamente. Eu disse: “Olha, eu não vou me retratar por isso”. E passei a bola para a deputada dizendo que eles podiam tentar dividir o Município, tentar tirar essa zona para outro município. E disse: “A deputada pode apresentar um projeto de lei”. Para mim, aparece contabilizado o registro da Ilha de Itamaracá, então tenho de colocar lá. Depois disse: “Eu posso sim fazer uma coisa. Aqui está o secretário de Segurança. Ele tem o boletim de ocorrência, eu não tenho. Ele pode dizer se o incidente foi na zona do presídio, que não é a da praia, da zona comercial e de moradias. Se ele encontrar nos dados de que tudo realmente aconteceu na zona dos presídios, é só ele chamar uma coletiva de imprensa e esclarecer”. Um mês depois me mandam o seguinte: 87% dos homicídios aconteceram na zona turística. Só 13% na zona dos presídios. Eu liguei para o prefeito: “Olha, já temos o detalhe daquele dado. Quer ainda que chame uma coletiva de imprensa?” (risos).

OP - Já houve reações mais extremas com políticos e gestores?
JACOBO - Sim, já recebi ameaças de morte. Porque, veja, primeiro mexe com o turismo. As pessoas vão ter medo de ir até o município. Toda essa história de violência traz prejuízo ao turismo. A segunda questão é que tudo isso mexe com interesses locais. Já recebi sérias ameaças de um município do Rio de Janeiro. Associações de hotéis e restaurantes me chamaram de mentiroso, de falsificador e de tudo o que eles tinham direito. A turma da bala dizia: “O Mapa da Insolência diz tal e tal coisa”. Havia um governador de Goiás que, na entrada de uma fazenda enorme, me recebeu com nada mais que dois tanques do Exército. E me chamou de tudo, você imagina… Um chefe de Polícia do Espírito Santo me chamou por telefone e me destratou de tudo. Disse: “Vem para Vitória para ver o que é bom pra tosse”. Fui uma vez até lá com medida de proteção da Polícia Federal. Em Vitória, existe a Scuderie (Detetive) Le Coq. É um grupo de policiais do Rio de Janeiro que, na década de 1960, criou uma associação e que alcunhou o dito que perdura até agora: “Melhor bandido é bandido morto”. E isso dito por delegado de Polícia. Imagine o que eles faziam. Pois bem, eles foram para Vitória e ficaram muito fortes por muitos anos. Quando eu saquei o Mapa da Violência no qual Vitória aparecia no primeiro lugar, imagine todas as felicitações que recebi (risos).

“Começa a surgir essa população matável. Aquela pessoa de quem ninguém vai sentir falta. Não só a Polícia, é toda a estrutura da sociedade que está gerando a consciência da população matável”

PERGUNTA DO LEITOR

Rui Aguiar, chefe do escritório do Unicef para o Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte

LEITOR - O Brasil é um dos maiores fabricantes de armas do mundo. Isso explicaria o número alarmante de homicídios de jovens por arma de fogo? O brasileiro é um povo belicoso?

Jacobo - Exatamente, o Brasil tem se convertido, nos últimos anos, num dos maiores exportadores do mundo. Segundo o último Small Arms Survey, publicação do Instituto de Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, de Genebra, o Brasil já em 2012 galgou a quarta posição internacional em volume de exportações de armas de fogo. Só superado por Estados Unidos, Itália e Alemanha. Na última eleição no País fabricantes financiaram campanhas eleitorais de acima de 60 deputados que hoje pressionam por derrogar o Estatuto do Desarmamento e afrouxar drasticamente o controle das armas de fogo. A ampla circulação e facilidades de acesso de nossa juventude a armas de fogo é um dos fatores de maior poder explicativo dos pandêmicos níveis de homicídios de jovens no País, junto com uma cultura da violência que vitima drasticamente nossos jovens.

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