Por que a Presidência da República quis calar jornais? O que se quer ocultar?
“Os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro”
Ruy Barbosa, em A Imprensa e o Dever da Verdade
O princípio não é novo. Se não nos contentarmos com Ruy Barbosa, que publicou a frase acima há 97 anos, poderíamos recorrer à Roma de César, que nos legou o imperativo da aparência de honestidade, mas não há de ser necessário. O ponto aqui tão antigo e tão óbvio quanto elementar: aos governantes e seus familiares não cai bem ter algo a esconder – e cai ainda pior ter algo que, para ser escondido, requer uma medida de força.
É nesse contexto que devemos refletir sobre o gesto do presidente da República de fazer acionar a Justiça para obter uma antecipação de tutela que, na prática, impôs censura à imprensa. O objetivo dele foi impedir que se noticiasse a história da investigação policial de um hacker que violou o celular da primeira-dama para depois chantageá-la. Por intermédio de um advogado que trabalha na Casa Civil, o Planalto obteve da 21.ª Vara Cível de Brasília uma decisão que proibiu os jornais Folha de S.Paulo e O Globo, que chegaram primeiro aos detalhes do processo, de publicarem reportagens sobre o assunto.
Sem meias-palavras, o que se tem aí é a típica censura judicial, essa rebuscada modalidade de proibição prévia que impede um órgão de imprensa de cobrir uma pauta determinada. É censura e é violência: tendo sido determinada pelo Poder Judiciário, é uma medida que deve ser obrigatoriamente obedecida, ou seja, uma medida de força.
Há juristas que não concordam com esse modo de descrever a coisa. “O juiz não censura”, ponderam. Alegam que o juiz não é censor, não é funcionário do Poder Executivo encarregado de censurar as redações, mas apenas um magistrado que aplica a lei (elaborada e aprovada dentro das regras do Estado de Direito) a um caso concreto. O juiz proíbe, admitem, mas não censura.
Do ponto de vista formal, esses juristas têm alguma razão. Só alguma. Do ponto de vista material e substantivo, estão errados. Uma medida judicial que leva o magistrado a usurpar a função dos editores de jornal (dando ao magistrado o papel de decidir o que deve e o que não deve ser publicado na imprensa) viola direitos fundamentais não apenas dos jornalistas, mas, principalmente, dos cidadãos. A vítima final da censura não é o repórter, mas o direito à informação de que todos nós somos titulares. Por esse ângulo, revela-se com mais clareza que a tal “antecipação de tutela” resulta em atentado ao direito à informação. O objetivo da medida é impedir que a sociedade tome conhecimento de um fato específico, isto é, o objetivo da medida é censurar.
Outros dirão ainda que, no caso presente, só o que o Judiciário fez foi arbitrar um ponto de equilíbrio entre dois polos de direitos protegidos pela Constituição: de um lado, o polo formado pela liberdade de expressão e pelo direito à informação e, de outro, o polo da privacidade, envolvendo a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Acionado, o Judiciário não teria agido como censor, apenas cumprido seu dever de precisar a fronteira estrita da privacidade que não poderia ser ultrapassada pela liberdade de imprensa.
Temos aí outro equívoco, bastante comum, e não apenas no Brasil. No Reino Unido, por exemplo, desde os anos 1990 existe a figura jurídica tenebrosa das superinjunctions – para usarmos aqui o apelido inventado por Alan Rusbridger, ex-diretor de redação do Guardian –, que consiste numa medida judicial que, além de proibir um jornal de tocar num tema especificado pelo juiz, proíbe-o adicionalmente de noticiar que foi vítima dessa proibição. Lá, como aqui, muitos acreditam que o cerceamento das liberdades é uma terapia eficaz para proteger direitos da personalidade próprios da esfera íntima.
Por que se trata de um equívoco? Muito simples: a privacidade não é um limitador da liberdade, mas, antes, uma conquista da liberdade. Aliás, sem liberdade a privacidade viraria pó.
Detalhemos um pouco mais. As medidas restritivas de liberdades sempre, sem exceção, atentam diretamente contra a normalidade democrática. Indiretamente, corroem os alicerces não apenas das garantias de privacidade, como das próprias bases ontológicas do conceito de privacidade. Não há privacidade sem que haja, antes, a liberdade. A propósito, o polo antagônico da privacidade nunca foi a liberdade, mas, sim, o poder do Estado. Foi contra as tiranias que as paredes da privacidade se ergueram, não contra as liberdades. Tanto é assim – e tanto tem sido esse o melhor entendimento da doutrina comprometida com os direitos humanos – que, diante da escolha entre a liberdade de imprensa e a privacidade, se recomenda ao juiz que se respeite a precedência da primeira.
O ensinamento tem ainda mais validade quando se trata da privacidade de governantes, que não são gente como a gente. Se eu fico doente, posso guardar isso em segredo. Agora, se o presidente da República é acometido de uma moléstia, isso não é um tópico indevassável de sua vida íntima, é uma questão de Estado, é de interesse público. Se você é ateu ou presbiteriano, não é da conta de mais ninguém, mas se um candidato a deputado professa uma seita satânica, isso é de interesse público. Por definição, a privacidade dos que exercem legitimamente o poder – numa democracia, bem entendido – é diferente da intimidade dos comuns.
É direito da sociedade conhecer a história pessoal de quem a governa e, exatamente por isso, é dever das autoridades prestar contas sobre aspectos de sua vida privada, a começar por sua declaração de bens.
No final da tarde de ontem a Folha conseguiu derrubar a censura, em recurso à segunda instância. Melhor assim, mas fica a perplexidade. Por que a Presidência da República quis calar jornais que, de resto, não se ocupam de fofocas e de sensacionalismo vulgar? O que o poder quer ocultar?
* JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
*Eugênio Bucci ,
O Estado de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
16 Fevereiro 2017 | 03h00
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