HOMENAGEM
O idealizador da UnB, que morreu em 17 de fevereiro de 1997, vítima de câncer, renasce pela voz do professor Isaac Roitman
- Jorge Gil
Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar.
E eu não vou me resignar nunca
Darcy Ribeiro
E eu não vou me resignar nunca
Darcy Ribeiro
A convite da Secretaria de Comunicação, o professor Isaac Roitman aceitou o desafio: encarnar Darcy Ribeiro, o antropólogo, o escritor, o visionário fundador da Universidade de Brasília. "Durante uma semana, me dediquei integralmente à tarefa de mostrar que Darcy Ribeiro continua vivo", conta Roitman, professor emérito da UnB, coordenador do Núcleo de Estudos do Futuro (n-Futuros/CEAM-UnB), pesquisador emérito do CNPq, membro da Academia Brasileira de Ciências e membro do Movimento 2022 – O Brasil que queremos.
Entre 1966 e 1995, na Universidade do Terceiro Milênio, Roitman manteve permanente contato com o autor de O povo brasileiro, Utopia selvagem e Maíra, entre outras obras. Darcy Ribeiro morreu no dia 17 de fevereiro de 1997, aos 74 anos de idade, vítima de câncer. Estava internado no Sarah, em Brasília. Segundo boletim oficial do hospital, teve uma morte "tranquila e sem sofrimento". Hoje, Darcy ressurge para falar de passado, presente e futuro. Permanece inquieto, indígena e educador. E, claro, para sempre pleonasticamente imortal.
Como foi a experiência de ser um dos idealizadores e o primeiro reitor da Universidade de Brasília?
Exerci o cargo de reitor em dois períodos. O primeiro foi de 5 de janeiro de 1962 até 19 de setembro do mesmo ano. Fui sucedido, na reitoria, por Frei Mateus Rocha, que dirigiu a UnB até 24 de janeiro de 1963, quando então reassumi a reitoria, até o dia 19 de junho de 1963. Meu envolvimento com a UnB foi precedido de muita reflexão e muito trabalho.
Poderia falar um pouco dessa, digamos, "pré-história"?
Antes da criação da Universidade de Brasília, eu já estava emocionalmente envolvido na utopia de Juscelino Kubitschek de mudar a capital para o centro do Brasil. Eu trabalhava no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que tinha o encargo de planejar o ensino fundamental e médio da nova capital, sob a direção de Anísio Teixeira. Comecei então a arguir sobre a necessidade de criar também uma universidade e sobre a oportunidade extraordinária que ela nos daria de rever a estrutura obsoleta das universidades brasileiras, criando uma universidade capaz de dominar todo o saber humano e de colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional. Encontrei logo adesões e oposições. Essas últimas partiram de assessores de JK, que queriam a nova capital livre de badernas estudantis, assim como de greves dos operários fabris. Foram crescendo, porém, as ondas de apoio, que vinham, sobretudo, dos grandes cientistas brasileiros, que se juntavam na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O decisivo, porém, foi alcançar o apoio de Cyro dos Anjos e de Victor Nunes Leal, subchefe e chefe da Casa Civil, respectivamente. Ambos passaram a falar ao presidente da República do imperativo de se criar uma universidade em Brasília. Conseguiram até que ele, por decreto, me desse o encargo de projetar uma universidade para a nova capital. Eu andava sempre pelo Palácio do Catete, como encarregado que era de colaborar na redação das mensagens presidenciais, inclusive de redigir o capítulo da Educação. Nesse trabalho, atribuindo ideias à Presidência da República, é que me aprofundei no estudo dos sistemas educacionais, inclusive das formas de organização das universidades.
Mas não parou por aí, certo?
Não, não parou. Armado com a autoridade que me dava o referido decreto, passei a reunir cientistas, artistas, filósofos para discutir a forma que deveria ter a futura universidade. Terminei por redigir um documento muito divulgado, que englobava uma crítica severa à universidade que tínhamos e a proposição de uma universidade de utopia. Nisso estávamos, quando fui chamado ao Catete para falar com o presidente. Ele me disse que tinha sido procurado por Dom Hélder Câmara, que lhe comunicara o propósito que tinha a Companhia de Jesus de criar em Brasília uma universidade jesuítica, sem ônus para o governo, acrescentando que a principal universidade de Washington, nos Estados Unidos, era uma universidade católica. O presidente me disse que, entre meu projeto e o jesuítico, ele lavava as mãos. Suspeitei logo que ele já tivesse optado pelo projeto de uma universidade religiosa. Vivi uma semana de desespero, vendo ruir o sonho da minha universidade de utopia, que era já, então, a ambição maior da intelectualidade brasileira como caminho de renovação do nosso ensino superior e de desenvolvimento da ciência. No meio desse meu desengano, tive a ideia de apelar para os cães de Deus, os dominicanos, que tradicionalmente opunham reservas aos projetos jesuíticos. Procurei em São Paulo o Frei Mateus Rocha, e lhe expus o meu problema. Argumentei que o Brasil tinha oito universidades católicas, quatro delas pontifícias, que formavam farmacêuticos e dentistas, mas não formavam nenhum teólogo. Propus entregar aos dominicanos a criação de um Instituto de Teologia Católica dentro da Universidade de Brasília. Seria um ato revolucionário, porque a teologia, expulsa das universidades públicas desde a Revolução Francesa, a elas voltaria, justamente na mais moderna universidade que se estava criando naqueles anos. Houve reações adversas à minha iniciativa, inclusive a de um eminente cientista, que me acusava de trair a tradição laica da educação. Frei Mateus foi a Roma procurar o Santo Papa João XXIII, em companhia do Geral dos Dominicanos – o chamado Papa Branco – e lhe fez a entrega de minha proposta. Soube logo, por telegrama, que o papa tinha aquiescido. Tempos depois fui ao encontro de Frei Mateus, pedindo o documento papal. Ele me disse que o papa não escreve cartas nem faz promessas. Que toda a Igreja naquele momento sabia que não haveria universidade jesuítica em Brasília, estando aberto espaço para nós.
O presidente Juscelino Kubitschek aceitou tudo isso de bom grado?
Enorme foi a surpresa de Juscelino quando lhe contei as minhas intenções. O que se seguiu, porém, foi um ato dele encarregando o ministro da Educação e um grupo de canastrões, inclusive Pedro Calmon – que era, havia dezoito anos, o reitor da Universidade do Brasil – de programar uma universidade para Brasília. Eu seria uma voz isolada naquela convenção, destinada a perder a parada. Minha reação foi escrever um documento dirigido aos principais cientistas e pensadores brasileiros, para comprometê-los com o projeto que eu havia elaborado e para o qual pediria o apoio da referida comissão. O certo é que a comissão acabou por mandar ao presidente o nosso projeto. Provavelmente porque a celeuma seria enorme se quisessem fazer em Brasília mais uma universidade federal. Em 21 de abril de 1960, Juscelino mandou ao Congresso Nacional uma Mensagem pedindo a criação da Universidade de Brasília. Seguiu-se para mim um longo trabalho, primeiro nas Comissões da Câmara dos Deputados, para conseguir a aprovação de uma lei libertária da criação em Brasília de uma universidade inovadora. Nesse trabalho, contei com a colaboração de San Tiago Dantas, que deu forma ao Projeto de Lei, instituindo a universidade como uma organização não governamental, livre e autônoma, de caráter experimental e dotada de imensos recursos para constituir-se e para funcionar.
O processo correu risco de parar com Jânio Quadros?
Ele, na verdade, me confirma, por decreto, como coordenador de planejamento da Universidade de Brasília. Em seu breve governo, adiantamos muito na fixação do terreno onde ficaria o campus da Universidade, entre a Asa Norte e o lago. Contribuiu poderosamente para isso o plano urbanístico da Universidade, proposto por Lúcio Costa. Nesse momento, vendo que a universidade era inevitável, Israel Pinheiro lhe concedeu um vasto terreno de seis quilômetros, localizado no eixo monumental. O propósito era afastar a agitação estudantil do centro de poder da capital. Aceitei a doação, destinando-a a criar ali um centro agrícola de estudo de tecnologias voltadas para o cerrado. No dia da renúncia de Jânio, passei no gabinete da Presidência e senti ali um ambiente de incontrolável tensão. Mas ninguém me adiantou nada. O secretário do presidente, José Aparecido de Oliveira, sugeriu que eu fosse para a Câmara dos Deputados. Lá, só lá, soube da renúncia... No meio de uma assembleia perplexa, porque havia acabado de aceitar a renúncia como um ato unilateral, que não cumpria discutir, mas apenas tomar conhecimento. A sessão estava por encerrar-se, o que ninguém queria.
Nesse clima, o que foi possível fazer?
Acerquei-me então do presidente da Mesa, o deputado Sérgio Magalhães, e pedi a ele que pusesse em discussão o projeto de criação da Universidade de Brasília, que era o número dezoito da Ordem do Dia. Ele reagiu instantaneamente, tratando-me de louco. Mas também instantaneamente percebeu que, ali, o único homem de juízo era eu. Mandou que eu descesse ao plenário para conseguir que um líder propusesse a mudança da Ordem do Dia. Quando eu ainda tentava convencer o deputado Josué de Castro, o presidente Sérgio Magalhães anunciou que, tendo sido aprovado o requerimento do líder do PTB, punha em discussão e mandava ler o projeto de criação da Universidade de Brasília. O que se seguiu foi o tumulto de uma Câmara que demorou alguns minutos a perceber do que se tratava, que era fazê-los exercer suas funções, discutindo uma lei de suprema importância. Os debates foram acalorados entre a UDN, como sempre contrária aos projetos do governo, e os outros partidos, com o pendor de aprová-lo. O mais veemente discurso contrário foi o do velho Raul Pilla, ponderando que, se nossos pais e avós mandavam seus filhos estudarem em Coimbra, bem poderia o povo de Brasília mandar os seus para as antigas universidades, sem incorrer no risco de criar aventureiramente uma universidade em uma cidade apenas nascente. Na votação, o projeto da Universidade de Brasília foi aprovado com grande margem favorável.
Sendo assim, faltava o Senado.
Comecei meu trabalho lá. O Senado aquiescia verbalmente às minhas proposições, mas não parecia disposto a aprovar o projeto. Procurei então o Hermes de Lima, pedindo conselhos. Ele me disse que tinha uma boa solução, mas estava certo de que eu não a acolheria: era procurar o líder Filinto Müller, pedindo que ele conduzisse o debate da universidade na casa. Fiquei horrorizado. Tratava-se de aproximar dois extremos simbólicos – o meu de esquerdista e o de Filinto Müller, direitista. Mas procurei o senador e pedi o seu apoio. O senador me convidou para um chá em sua casa, onde comemos os excelentes bolos que a sua senhora fazia. Mal ouviu parte da exposição que eu queria fazer, justificando a organização da nova universidade, e me disse: “Não se inquiete, professor. O problema agora é meu. Breve eu lhe farei saber quando será a discussão final em plenário.” Efetivamente, pouco tempo depois ele me chama, me faz sentar numa cadeira lateral para ouvir os debates sobre o projeto de criação da nova universidade. Eu os ouvia atentíssimo, sobretudo o senador Mem de Sá, que num longo discurso argumentava que, sendo o professor Darcy Ribeiro sabidamente um intelectual inteligente e competente; sendo também inegavelmente um homem coerente; e sendo, para arrematar, um reconhecido comunista, fiel ao marxismo, a universidade que propunha só podia ser uma universidade comunista. Como tal, inaceitável para o Senado Federal. Seguiu-se à votação. O projeto da universidade foi aprovado por imensa maioria. Eu tinha em mãos, pois, toda uma lei admirável que deveria pôr em execução.
O comunista venceu?
Sim! (Riso largo). Finalmente o meu sonho de criação de uma instituição moderna, que rompesse com os padrões estabelecidos para o ensino superior no Brasil, estava se realizando. Em 15 de dezembro de 1961, o presidente da República à época, João Goulart, autorizou a criação da universidade, sancionando a Lei nº 3.998. A nova universidade, então, nasceu inspirada no projeto interrompido da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, que surgiu impulsionada por Anísio Teixeira para se contrapor às instituições existentes, consideradas obsoletas. Minha primeira providência foi discutir com Anísio Teixeira se o reitor deveria ser ele, que nesse caso teria de se mudar para Brasília, ou se seria eu. Anísio, em sua generosidade, aceitou o cargo de ser meu vice-reitor, o que comuniquei a Hermes de Lima e assim saiu o decreto do presidente João Goulart que me fazia fundador e primeiro reitor da Universidade de Brasília. O auditório Dois Candangos, onde aconteceu a cerimônia de inauguração do campus em 21 de abril de 1962, ficou pronto 20 minutos antes da festa. Recebeu esse nome em homenagem a dois trabalhadores que morreram soterrados no local durante a construção. Assim como Brasília, o campus era um grande canteiro de obras projetadas pelo Oscar Niemeyer, o pai dos principais monumentos da nova capital do país. Os estudantes de Engenharia e Arquitetura tinham aulas no campus, pois as obras serviam como aprendizado real. Os outros estudantes assistiam às aulas no Ministério da Saúde. Aos poucos, do caos de poeira e lama, surgiram pequenos prédios: para a Reitoria, a Biblioteca, Departamentos de Letras, de Ciências Humanas, de Arquitetura, Física e Matemática. A UnB introduziu estruturas inéditas em institutos, voltados para o conhecimento fundamental, e faculdades, mais para o trabalho prático, sendo o ensino pensado juntamente com a pesquisa. Essa nova concepção passou posteriormente nas reformas das demais universidades no país. O Plano Orientador da Universidade de Brasília, aprovado pelo conselho diretor da FUB, estabelecia que a nova universidade começaria a constituir-se em torno de oito institutos centrais, cujo desdobramento em departamentos e faculdades seria estabelecido oportunamente. Os meses e anos seguintes foram os da alegria de dar nascimento à Universidade de Brasília, transfigurando a ideia em coisa concreta. Dela tive de me afastar, primeiro para ser ministro da Educação e depois para ser chefe da Casa Civil. Anísio assumiu a reitoria, fazendo Frei Mateus Rocha, que levava adiante com todo entusiasmo a edificação do Instituto de Teologia Católica, o seu vice-reitor. Graças às funções que eu exercia na máquina do Estado, pude ajudar muito a Universidade. Por exemplo, na sua edificação, no equipamento de seus laboratórios e conseguindo residências para os professores que começavam a chegar às dezenas. Assim, a Universidade foi crescendo e desdobrando suas potencialidades, até o golpe militar que se abateu sobre o Brasil. Caiu sobre ela com toda a fúria.
O projeto da UnB sofreu danos irreparáveis?
O regime autoritário foi o responsável pela interrupção do projeto inovador que era o de buscar soluções para as grandes questões nacionais, em todas as áreas de conhecimento. Isso foi realçado no memorável livro A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, de autoria de Roberto Salmeron. Ele escreveu esse livro pela convicção da importância, pela memória coletiva, em primeiro lugar brasileira – mas a experiência é de alcance universal –, dos acontecimentos que ele viveu intensamente com outros, professores, estudantes, servidores. Tenho a convicção de que os princípios que nortearam a criação da UnB foram corretos. Repito o que disse em meu discurso em 15 de março de 1995, quando recebi das mãos do reitor João Claudio Todorov o título de Doutor Honoris Causa da UnB: “Meu sentimento hoje é o de reencontro com minha filha querida, já passada dos trinta anos, que assoma como uma primeira encarnação do que houvera sido, se tantas provações não lhe caíssem em cima. A ditadura militar regressiva e repressiva que avassalou o Brasil assaltou furiosa nossa universidade, ainda menina.”
A UnB não é filha única, sabemos.
É verdade. Em 1991 fui chamado pelo governador do Rio de Janeiro para conceber uma nova universidade, localizada em Campos dos Goytacazes, a Universidade do Terceiro Milênio, que hoje leva meu nome: a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Era uma nova oportunidade de construir uma instituição de ensino contemporânea. Na concepção dessa nova universidade, a minha experiência anterior na implantação da UnB seria importante, assim como a criação ou a reforma de universidades na Costa Rica, Argélia, Uruguai, Venezuela e Peru. Criar uma universidade nova é um privilégio extraordinário, provavelmente o mais honroso e o mais gratificante para um trabalhador da educação. Concebi um modelo inovador, no qual os departamentos – que, na UnB, já tinham representado um avanço ao substituir as cátedras –, dariam lugar a laboratórios temáticos e multidisciplinares como célula da vida acadêmica. Assim como na Universidade de Brasília, na UENF, nos primeiros meses, o estudante tinha uma oportunidade de incorporar uma cultura universitária, um aprendizado de convívio social para depois ser preparado para a profissão escolhida. E, assim como na concepção da UnB, convoquei pensadores e pesquisadores renomados para elaborar o projeto. Um marco importante foi a primeira universidade brasileira onde todos os professores tinham o título de doutorado. Na criação da UENF, tivemos um importante apoio da sociedade campista, que resultou na aproximação com a sociedade regional, incluindo as prefeituras, as agências de desenvolvimento, as instituições de ensino superior e as entidades da sociedade organizada. Um dos objetivos dessa nova universidade foi a de implantar e incrementar o Parque Tecnológico do Norte Fluminense. Não fui reitor da UENF. O primeiro foi Wanderley de Souza, renomado cientista. Fiquei ao seu lado permanentemente, seguindo passo a passo a formação dessa universidade. Hoje, fico muito contente e feliz em ver que as minhas iniciativas em conceber um novo modelo de universidade inspiraram a criação de novas universidades como as federais do ABC e do Sul da Bahia.
Qual a sua opinião sobre as ações afirmativas proporcionadas pelas políticas de cotas raciais e sociais?
Em 2003, a UnB foi a primeira universidade federal a adotar a reserva de vagas para estudantes negros. De lá para cá, milhares de estudantes cotistas entraram e muitos já se formaram. Além disso, desde 2004, criou um sistema específico de seleção para indígenas e, posteriormente, cotas para estudantes de famílias com baixa renda. Essa política de cotas tinha como objetivo ter, no ensino superior, uma composição social, étnica e racial capaz de refletir minimamente a situação do Distrito Federal e a diversidade da sociedade brasileira como um todo. Como cidadão e como antropólogo, aprovo essas ações afirmativas. Fico orgulhoso que a UnB tenha sido pioneira e que as políticas de cotas se espalharam pelo Brasil. No entanto, penso que a nossa meta final é de construirmos um país sem a necessidade de uma política de cotas para a educação. Um país realmente democrático e, como costumava dizer Anísio Teixeira, “com uma educação pública de qualidade para toda a juventude brasileira”.
Em 1996, o senhor foi o relator da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que vigora ainda hoje. Quais objetivos foram alcançados a partir dessa legislação e quais ficaram a desejar?
A educação brasileira tem sido discutida e propostas inovadoras foram lançadas ao longo do tempo. Uma virtuosa iniciativa de educadores e intelectuais brasileiros foi o lançamento do Manifesto da Educação Nova em 1932, que teve a sua segunda edição em 1959. A primeira Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB) foi criada em 1961. Uma nova versão foi aprovada em 1971 e a terceira, ainda vigente no Brasil, foi sancionada em 1996 e na qual eu tive intensa participação. Essa lei é conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Após a elaboração da Constituição de 1988, muitos educadores já estavam envolvidos na discussão de um Estado-Educador que não apenas se preocupasse, mas privilegiasse a educação escolarizada, tornando o acesso e a permanência na escola, ao longo dos anos, cada vez maior, principalmente para os mais pobres. Eu apresentei um anteprojeto em 1992, que foi também assinado pelos senadores Marco Maciel e Mauricio Corrêa. Nessa primeira versão colaboraram Cândido Alberto Gomes, Maria do Céu, Jorge Ferreira e Eunice Ribeiro Durham. Fui relator do Projeto de Lei na Comissão de Educação do Senado Federal e tive embates com um projeto encaminhado pela Câmara Federal e lutei intensamente para que o meu substitutivo fosse também aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Finalmente, em fevereiro de 1966, o projeto foi aprovado no plenário do Senado Federal e retornou à Câmara, na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro. O deputado Pedro Jorge foi o relator. A lei aprovada pelo Congresso Nacional foi sancionada sem vetos pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em 20 de dezembro: lei nº 9.394. Penso que a LDB de 1996 provocou avanços significativos para a melhoria da educação. Ela inovou em vários aspectos. Poderia destacar os seguintes pontos: o direito de todo o cidadão brasileiro de ter acesso ao ensino fundamental, apontando que este direito seja, gradativamente, levado também ao ensino médio; determinou a função do governo federal, estados e municípios no tocante à gestão da área de educação; estabeleceu obrigações das instituições de ensino (escolas, faculdades, universidades etc.); determinou a carga horária mínima para cada nível de ensino; apresentou diretrizes curriculares básicas; apontou funções e obrigações dos profissionais da educação (professores, diretores etc.); introduziu o sistema de avaliação. No entanto, infelizmente, não conseguimos colocar na prática as aspirações daqueles que defenderam uma LDB construtiva e libertária. Ainda temos muito o que fazer para melhorar a educação brasileira, desde a primeira infância até a pós-graduação. Essa luta não cessará enquanto os egressos do ensino básico forem analfabetos funcionais, despreparados para um convívio civilizatório e sem terem respeito à natureza e ao planeta. Os egressos do nosso sistema educacional devem ser preparados para serem protagonistas na construção de uma sociedade sem desigualdades sociais. Seria recomendável a revisão periódica da LDB para ajustarmos o sistema educacional brasileiro em um mundo que se vislumbra em constante transformação e pelo avanço rápido da tecnologia. Dessa forma, teremos sempre uma educação contemporânea.
O Memorial Darcy Ribeiro, conhecido como Beijódromo, foi inaugurado em 2010 para exaltar o seu legado, a sua memória. Como recebeu esta homenagem?
Fiquei imensamente feliz. O Beijódromo nasceu de um sonho meu de ver construída a sede da Fundação Darcy Ribeiro no campus da UnB. Em 11 de janeiro de 1996, foi aprovado o estatuto da Fundação, que dispunha, no seu primeiro parágrafo: “A Fundação terá como núcleo (base) principal de trabalho a área que lhe será destinada por Universidade Pública a ser definida pelo Presidente, onde instalarão para uso acadêmico a Biblioteca DARCY RIBEIRO, seus arquivos e os de Berta Gleizer Ribeiro.” Eu sonhava com um espaço localizado na Praça Central da UnB para abrigar meu acervo de livros, documentos, obras de arte e mobiliário. Além disso, seria um local onde se poderia fazer serestas, as pessoas poderiam estar em volta se beijando, namorando. Em 1996, procurei o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, que tivera uma participação importante junto a Oscar Niemeyer para projetar o campus da UnB. Pedi a ele para elaborar um projeto para a concretização de meu último desejo. A minha sintonia com o Lelé era tão forte que bastaram poucas palavras para surgir a proposta, que ele fez questão de me entregar pessoalmente, acompanhada de uma pequena maquete. Segundo o Lelé, o projeto refletia a dicotomia de minhas atividades. O formato que lembra um disco voador, segundo ele, refletia meu lado empreendedor. Por sua vez, o formato de uma maloca indígena refletia meu trabalho como antropólogo. Achei tudo isso muito divertido. Cheio de alegria, apresentei o projeto ao então reitor da UnB, João Claudio Todorov, que, juntamente com Lelé, escolheu um terreno para a construção próximo à Reitoria. O projeto ficou paralisado por 12 anos. Finalmente, em 2008, após uma reunião com a Fundação Darcy Ribeiro, com a presença de Lelé e o então reitor da UnB, o Roberto Aguiar, o projeto caminhou. Um ano depois, o reitor José Geraldo de Sousa Junior apresentou o projeto à comunidade acadêmica da UnB e à sociedade, em uma audiência pública. Foi aceito sem restrições e contou com o apoio governamental para liberação da verba necessária. Teve financiamento do Ministério da Cultura, na gestão do Juca Ferreira. Fiquei contente de ver na solenidade de inauguração, em dezembro de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o José Mujica, presidente do Uruguai. Essa derradeira homenagem simbolizada no amálgama de um óvni com uma casa nativa me fez concluir que valeu a pena viver.
E qual a mensagem para a juventude brasileira?
Em primeiro lugar, gostaria de convocar os jovens para um olhar para o futuro. As próximas décadas serão de lutas para um renascer do Brasil. Antevejo algumas dessas batalhas. A primeira delas será reconquistar a institucionalidade da lei original que criou a Universidade de Brasília como organização não governamental, livre e autoconstrutiva. Depois dessa reconquista, a expansão dessa estrutura para todas as universidades públicas do país. Simultaneamente, cumpre libertar-nos da tutela ministerial, assumindo plenamente a responsabilidade na condução de nosso destino. Os jovens deverão ser protagonistas para, de forma permanente, reinventar o ensino básico e superior, de graduação e pós-graduação, fazendo deles instrumentos de liberação do Brasil. Olhando para o futuro, nostálgico dos velhos tempos, o que peço é que voltem ao Campus Universitário Darcy Ribeiro e a todos os campi do país, aquela convivência alegre, aquele espírito fraternal, aquela devoção profunda ao domínio do saber e a sua aplicação frutífera. Vocês jovens devem ser protagonistas para elaborar uma versão contemporânea dos Centros Integrados de Educação Popular (CIEPs), iniciativa do governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro nos quais as crianças possam ter uma educação de qualidade em tempo integral. Repito uma frase minha: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Desmontar esse projeto é a nossa principal causa. Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas, a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas. Deixo como herança os meus fracassos, para que sejam transformados em vitórias pelos jovens dessa e das próximas gerações. E deixo o recado primeiro e último aos jovens: sejam brasileiros sempre apaixonados pelo Brasil.
Para ler Darcy Ribeiro na Editora UnB
COLEÇÃO DARCY NO BOLSO
Darcy Ribeiro sempre pensou o Brasil dentro de um contexto de integração regional. Percorreu a América Latina procurando entendê-la e explicá-la. Para ele, "nós, latino-americanos, só temos duas opções: nos resignarmos ou nos indignarmos. E eu não vou me resignar nunca".
Ao longo dos séculos, vimos atribuindo o atraso do Brasil e a penúria dos brasileiros a falsas causas naturais e históricas, umas e outras imutáveis. Segundo Darcy Ribeiro, "trata-se, obviamente, do discurso ideológico de nossas elites".
Este volume da Coleção Darcy Ribeiro reúne trechos de escritos colhidos ao longo da sua obra, em seus romances, em suas memórias. Revela ao leitor memórias de sua infância e adolescência, os meandros iniciais de sua formação de pensador. Conta como ele começou a olhar e perceber o mundo e a vida.
Nesses textos, Darcy relembra e refaz uma parte essencial de sua trajetória, desde a sua adolescência. Traça um retrato comovedor não apenas de si, mas de uma geração, de um tempo, de um país.
Darcy Ribeiro teve um longo contato com os índios em seu trabalho como antropólogo. A sua ação em defesa dos índios era um de seus orgulhos mais profundos e seus trabalhos se tornaram referência obrigatória. Para ele, a questão indígena não era tema acadêmico; era compromisso de vida.
"Esta foi a vida que me coube viver, e que vivi até a última gota", costumava dizer Darcy Ribeiro. Esse livro reúne um pouco de suas confissões, de suas memórias, que nos ajudam a conhecer o perfil desse que foi um brasileiro apaixonado por seu país e confiante no futuro.
Longo e importante para a sua formação não apenas profissional, mas pessoal, foi o tempo que Darcy Ribeiro passou convivendo com diversas etnias indígenas no Brasil. Nos textos aqui reunidos aparecem os meandros dessa relação de respeito, admiração e gratidão. Darcy encontrava nos índios um ponto de partida para a busca de suas utopias.
Participante ativo durante o governo constitucional de João Goulart, que foi derrubado por um golpe militar, Darcy conta, nesse volume, sua relação direta com Jango e traça um retrato detalhado daqueles tempos e de como seria o país que se queria fazer e não deixaram que fosse feito.
Além dos bastidores da trama que culminou no golpe de 1964 no Brasil, esse volume traz o que significou para Darcy o exílio, a tentativa de volta, a prisão. Traz ainda relatos de viagens e encontros com Fidel Castro e Ernesto Che Guevara.
Talvez esse seja, nessa série de livros reunindo textos de Darcy Ribeiro, o mais comovedor. Conhecer Darcy Ribeiro é parte essencial do legado que ele nos deixou – um legado de realizações, e também de sonhos e esperanças.
***
Nesse livro-testemunho de Darcy Ribeiro há uma nutrida e consistente mostra da maneira de pensar e ver a vida e o mundo, de ver os dois eixos principais de suas atenções, a América Latina e, especialmente, o Brasil. Darcy conta de sua formação intelectual, expõe as bases e vários meandros de seu pensamento.
Documento histórico que serve à memória da Universidade de Brasília, este é o discurso de Darcy Ribeiro, proferido em 1985, na retomada da Universidade de seu caminho original. Nesse pronunciamento, Darcy emocionou a todos os presentes ao lembrar de todos aqueles que com ele partilharam o sonho de uma universidade plural e democrática.
Darcy Ribeiro organiza este livro em 1962, numa edição especial patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura, contendo o projeto de organização da nova universidade e os pronunciamentos de educadores e cientistas sobre o texto. É importante revê-lo em sua originalidade e compreendê-lo com o apoio das percepções que dele tiveram seus contemporâneos, para melhor orientar suas possibilidades atuais. Este relançamento foi realizado na ocasião dos 50 anos de edição da Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961.
Nenhum comentário:
Postar um comentário