14 de fevereiro de 2017

Cidadania analfabeta

A má remuneração dos professores atinge a qualidade de vida e a formação dos cidadãos

Os brasileiros precisam reavaliar urgentemente seu real entendimento sobre o significado da palavra derrota. A Nação ainda guarda prolongado luto, que lembra as viúvas ibéricas de antigamente, pela perda da Copa do Mundo em 1950 contra o Uruguai. O placar de 7 a 1 que nos foi imposto pela Alemanha na Copa de 2014 continua sendo uma flecha da vergonha vibrando no ar. Porém o País permanece imperturbável ante nosso fracasso perante a OCDE no quesito educação. Este, sim, mereceria o pranto derramado das melhores carpideiras. 
A sigla OCDE identifica a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, com sede em Paris, que reúne 34 países e defende as bandeiras da democracia e da economia de livre mercado. Nasceu de uma iniciativa de nações europeias para colaborar na aplicação do Plano Marshall, criado pelo presidente Harry Truman (1884-1972) para reerguer o continente sobre os escombros da 2.ª Guerra Mundial.
Lá, na sua classificação relativa ao pagamento dos professores da educação básica, o Brasil aparece em penúltimo lugar. Despendemos constrangedores US$ 10.375 anuais como salário inicial. Talvez fosse melhor que já ficássemos em último, pois a indigência seria de tal ordem que a posição receberia o benefício da comiseração. Mas, não. Ganhamos da Tailândia, que paga pungentes US$ 1.500. Os dados estão à disposição de todos na web.
A julgar pela reação observada na população, a classificação não lhe parece dizer respeito. Aliás, o novo piso salarial para a categoria em 2017, que totaliza R$ 2.298,80, anunciado dias atrás pelo ministro da Educação, Mendonça Filho, foi recebido com idêntico descuido. Foi como se ouvíssemos a previsão do tempo sem chuvas e sem muito calor. Nem mesmo um dado positivo mexeu com os ânimos. Foi o fato de que, de 2009 para cá, houve um aumento gradativo dos vencimentos, cujo acumulado superou os índices de inflação. Trata-se de um sopro de esperança que supõe dias melhores. E, como aprendemos, a esperança é a última que morre. Portanto, fé no giz, no apagador e pé na tábua!
Sabemos, inexoravelmente, que níveis salariais caminham juntamente com a qualidade do trabalho requerido e esperado. Tal princípio, nesse particular, é confirmado pelos países bem resolvidos no assunto, particularmente a Coreia do Sul, decantada planetariamente como modelo de desenvolvimento ágil e consistente. Lá os professores iniciantes levam anualmente para casa US$ 28.591. A alfabetização contempla 97,9% da população. 
Quanto a nós, ficamos com 91%, segundo informa o IBGE. A porcentagem sugere algo em torno de 18 milhões de analfabetos. (Nesse quadro o Nordeste é campeão absoluto. Em Alagoas são 19,66%; no Maranhão, 18,76%.) Mas, atenção: não estamos falando apenas de algarismos, como se um operador da Bovespa estivesse comunicando as cotações do dia. Atrás deles se encontra um contingente gigantesco de seres humanos que imprimem o polegar direito nos documentos a título de assinatura. Ou que, perplexos, veem sopas de letras diante dos seus olhos do mesmo modo que os letrados olham os ladrilhos de argila com a escrita cuneiforme dos sumérios.
Convém ressaltar que a promoção sul-coreana embute uma intenção essencial e estratégica: a prioridade na educação como alavanca de crescimento, atrelada à sua condição primordial de instrumento civilizatório. Trata-se de uma lição e de dever de casa que estamos fazendo com atraso e a duras penas, como tudo o que ganha ares de urgência. 
Por ironia, sempre tivemos um espelho próximo para nos refletirmos, que é a vizinha Argentina. E aí emerge a figura do presidente Domingos Faustino Sarmiento, que governou o país de 1868 a 1874. A Argentina desfruta invejável situação no capítulo da alfabetização, com apenas 1,9% de analfabetos no conjunto dos 41,45 milhões de habitantes. 
Domingos Sarmiento era um escritor de nomeada. Teria um status parecido com o do nosso José de Alencar. Mas abdicou da literatura durante seu período na Casa Rosada, conforme atestam duas proclamações que ficaram famosas. “Serei na presidência da República como sempre fui: antes de mais nada, mestre-escola” e “a escola é o centro da democracia e o baluarte contra a barbárie”. Fez uma espécie de pacto tácito com os argentinos no sentido de privilegiar a educação. Importou 65 professores dos Estados Unidos para criar o curso normal. Tornou obrigatório o curso primário. Criou 800 escolas e 100 bibliotecas. Os alunos saltaram de 30 mil para 100 mil. 
Por essa época a população hermana era de 1,83 milhão de habitantes, 82% analfabetos. Sua atual taxa de alfabetização, de 98,1%, se situa entre as primeiras do planeta – não esquecer que a nossa, citada linhas atrás, é de 91%. Não por acaso, sua modesta casa de veraneio no delta do Rio Tigre (dois quartos) é protegida por um cubo blindado transparente para atestar o apreço que a Argentina lhe dedica.
Infelizmente, não tivemos a sorte dos nossos vizinhos. Nem prestamos atenção em algo portenho que tanto veneramos, que é a letra do tango Mano a Mano (1923): “Si precisás una ayuda, si te hace falta un consejo/ Acordate deste amigo (...)/ P’ayudarte en lo que pueda”...
Agora estamos com a batata quente nas mãos. A má remuneração dos professores não afeta somente uma categoria profissional. Atinge, sobretudo, a qualidade de vida e a boa formação dos futuros cidadãos brasileiros. O Censo Escolar de 2015 informa que não serão poucos. A rede pública nacional de educação básica tem 38,6 milhões de alunos.
Essa perspectiva perturbadora leva a dois outros versos, que abrem o poema No Meio do Caminho (1928), de Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho”. Versejadores costumam ser proféticos.
* PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO CIEE-SP E PRESIDENTE DO CONSELHO DIRETOR DO CIEE NACIONAL

*Luiz Gonzaga Bertelli ,
O Estado de S.Paulo
14 Fevereiro 2017

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