17 de setembro de 2015

Mal avaliado, ensino médio poderá ter currículo flexível





Objetivo do governo federal é incluir tema nos debates sobre conteúdo nacional
Plano prevê que 60% do currículo seja o mesmo para todo o país; até 2016, texto ficará sob consulta pública
FLÁVIA FOREQUEDE BRASÍLIA, Folha de S.Paulo, 17/9/2015
Etapa escolar que amarga baixos indicadores de qualidade em sucessivas avaliações do governo federal, o ensino médio poderá ganhar um currículo flexível, como defende o Ministério da Educação.
A pasta apresentou nesta quarta-feira (16) uma primeira proposta para o conteúdo que deve ser ensinado em salas de aula de todo o país, desde a educação infantil até o ensino médio. É uma espécie de currículo nacional.
O documento define que 60% do conhecimento a ser repassado pelos professores será uniforme em todo o país. Os demais 40% ficam a critério de Estados e municípios, devido às regionalidades.
Por exemplo, o Rio Grande do Sul pode dar ênfase maior à Revolução Farroupilha, enquanto São Paulo, à Revolução Constitucionalista de 1932.
Até o início do próximo ano, o texto ficará em consulta pública e, em seguida, será encaminhado ao Conselho Nacional de Educação. Caberá a esse grupo propor uma redação final, a ser confirmada depois pelo ministério.
"A proposta não assinala os diferentes percursos [para o aluno do ensino médio], mas o nosso interesse é de que, ao final, tenhamos condições de oferecer possibilidades de escolha aos jovens", disse o secretário de Educação Básica do ministério, Manuel Palácios.
Ele reconhece que o tema precisa ainda ser "amadurecido" e debatido com os Estados, principais responsáveis por essa etapa. "Não é fácil resolver esse problema, porque o estudante deve ter possibilidade de escolhas, mas sem deixar de ter contato com conhecimentos essenciais."
O currículo flexível no ensino médio, no qual o aluno poderia escolher o que estudar em parte da carga horária, também caminha para ser adotado na rede paulista de ensino –um projeto já foi encaminhado à Assembleia.
Para o ministro Renato Janine (Educação), um dos "pontos cruciais" dessa base nacional comum é a maior interação entre diferentes áreas.
"Um pequeno número de disciplinas desarticulada em seu conteúdo é muito menos produtivo do que um número maior de disciplinas, porém articulada", afirmou.
Ele apontou dois efeitos diretos da definição de um currículo nacional: parâmetros mais precisos para a formação dos professores e melhoria do material didático.
REGIÕES
O ministro destacou ainda a possibilidade de Estados e municípios definirem conteúdos a partir de características regionais da literatura ou da geografia, por exemplo.
Preliminar, o documento apresentado foi elaborado por 116 especialistas, divididos em comissões temáticas por disciplina ou série.
Coordenadora desse trabalho, Hilda Micarello reconheceu que o conteúdo definido foi "mais extenso" que o desejável, mas crê que, a partir de agora, o documento de 302 páginas possa ser "refinado".
Ali está previsto, por exemplo, que um aluno do 1º ano do fundamental deve ser capaz de "identificar práticas cotidianas de cuidados pessoais que contribuem para o bem-estar e a saúde".
No texto, o ministério defendeu uma "visão plural de mundo", sem discriminação por etnia, credos ou gênero –termo que motivou embates na construção de planos regionais de educação em Estados e municípios.
"A base é como o esqueleto do corpo, o que vai deixá-lo de pé. O que compõe esse corpo vem depois", resume Eduardo Deschamps, presidente do Consed (entidade que reúne secretários estaduais de educação).

'Não se pode usar base como uma receitinha'

ADRIANO QUEIROZCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAA diretora executiva da ONG "Todos Pela Educação", Priscila Fonseca da Cruz, defende a base curricular comum apresentada pelo governo federal, mas pondera que as escolas devem ir além do conteúdo mínimo proposto.
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Folha - A sra. é a favor de um currículo nacional com base comum? Ele deve ser mais aberto ou mais fechado?
Priscila Fonseca da Cruz - A definição de uma base faz com que se tenha clareza em relação ao que os alunos têm direito de aprender.
É questão também de equidade porque, muitas vezes, em escolas que atendem uma população com condição socioeconômica mais alta, aquilo que se espera que os alunos aprendam é superior, enquanto há municípios e Estados com baixíssimas expectativas, que acham normal haver mais de metade das crianças analfabetas em determinada série.
Quais as preocupações?
É preciso um currículo que vá além desse documento. [O risco] é que aquilo que deveria ser uma base nacional possa virar um currículo máximo, com as escolas focando só nisso.
Quando o ministro fala que isso [conteúdo fixo do currículo] é 60% e tem de haver outros 40% [a serem definidos] é uma sinalização importante. Como a gente garante que as escolas não vão pegar esse documento e interpretar como se fosse a receitinha do primeiro ano?
E a flexibilização do currículo do ensino médio?
É uma discussão no Congresso Nacional e que o Todos pela Educação defende. Os alunos hoje vão lá cumprir tabela, fazer Enem, tirar pontuação e cuidar da vida. A gente precisa resgatar e modernizar nosso ensino médio.
E é importante que tenha uma escola com identidade. Uma que está no campo trabalha mais questões ligadas ao ambiente. Outra com vocação tecnológica, em que os alunos adoram computador.

'É equívoco tirar a autonomia das escolas'

(AQ)COLABORAÇÃO PARA A FOLHADoutora em educação e professora titular da Unicamp, Maria Marcia Sigrist Malavasi considera que a proposta de currículo feita pelo governo federal é prejudicial por engessar um percentual muito grande do conteúdo e retirar a autonomia de escolas num país grande e com muitas diferenças.
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Folha - A sra. é a favor de um currículo nacional com base comum? Ele deve ser mais aberto ou mais fechado?
Maria Marcia Sigrist Malavasi - Temos um país tão grande, com tantas diferenças, tanta diversidade cultural. Quando colocamos 60% [de conteúdo fixo do currículo], estamos tirando grande parte da autonomia. Vivemos um caos educacional e ele tem como um dos grande equívocos a retirada da autonomia das instituições.
Há países europeus com base curricular nacional. Mas [eles têm] território muito menor, com princípios de nações mais uníssonos porque são menores.
Essa autonomia para municípios e Estados por volta dos 40% me parece muito pequena. Se tivéssemos mais não deixaríamos de ser uma nação. Os Estados processariam seu projeto pedagógico e político de forma mais adequada.
As discussões foram em um ritmo adequado?
Não. E há outro problema: nossos governos têm distribuído grande parte do poder de decisão a setores privados.
Temos visto lamentavelmente discursos que desprezam o nosso professor, sem dizer por que o nosso professor está mal formado, quando na verdade isso acontece porque os nossos governantes permitem cursos privados de qualidade muito duvidosa.
Essa culpa deliberada vem na contramão dos países mais desenvolvidos no mundo. Temos ido por um caminho equivocado, copiado o modelo dos Estados Unidos. Por outro lado, em países que têm uma educação maravilhosa, como a Finlândia, a base da boa educação é a autonomia da escola.

Currículo tem apoio, mas resultado é incerto

Base nacional curricular foi defendida por candidatos à Presidência, mas há controvérsias na forma da proposta
FÁBIO TAKAHASHIDE SÃO PAULOHá poucas dúvidas hoje no meio educacional de que o currículo nacional seja importante para melhorar o ensino. Isso não quer dizer que a medida terá sucesso automático, dada a divergência de opiniões de como implementá-la e a quantidade de caminhos que ela pode tomar.
Sinal da convergência é que na campanha presidencial do ano passado os três principais candidatos (Dilma, Aécio e Marina) defenderam a base nacional comum.
Sinal da dificuldade de implementação é que o currículo nacional está previsto desde a Constituição de 1988. Até hoje não houve consenso mínimo de como aplicá-lo.
Países que adotaram uma base nacional comum entenderam que ela deixa claro para as escolas e para as famílias o que os estudantes devem saber, no mínimo.
Quem consegue no Brasil responder se o aluno está aprendendo o adequado, seja na rede pública ou particular? O vestibular ou o Enem podem ser uma medida, mas aí é medição de estrago já feito, ao final da etapa básica.
A Austrália, que adotou base nacional em 2009, criou sistema on-line em que é possível saber, estudante por estudante, quem está com conhecimento dentro do esperado. Com base no currículo.
Para os que não chegaram ao mínimo, o sistema sugere ao professor como ajudá-lo.
O Reino Unido tem currículo nacional desde 1988. No início dos anos 2010, o país entendeu que deveria melhorar o desempenho dos alunos.
O currículo foi a base para a reforma. Especialistas foram aos documentos de sistemas de destaque no Pisa (avaliação internacional) para ver o que faltava. Pesquisaram, por exemplo, Cingapura e Finlândia. E viram que o conteúdo de matemática era "menos desafiador" do que nos concorrentes.
Tanto na Austrália quanto no Reino Unido, os currículos também norteiam a formação dos professores que atuam na educação básica.
No Brasil, uma das principais reclamações de gestores públicos é a distância entre o que os docentes aprendem na faculdade e o que deve ser ensinado nas salas de aula.
Apesar das vantagens que um currículo nacional possa trazer, a adoção de parâmetro único para um país não é fácil em nenhum lugar.
DIFICULDADES
Na Austrália, a discussão durou 20 anos. Nos EUA, apenas no fim de 2013 entrou em vigor uma base nacional.
O desafio é sempre encontrar mínimo de consenso para pontos como: é preciso listar todos os conteúdos que os alunos devem aprender? Ou apenas os principais e o restante fica para definição das próprias escolas? Quais conteúdos são essenciais?
Uma das principais resistências para o currículo vem das faculdades de educação, que entendem que o professor perderá autonomia.
Esses são dilemas que o Ministério da Educação terá de enfrentar. "O apresentado hoje é um bom início de conversa. Mas o caminho é longo. Se as redes e os professores não se apropriarem da ideia, não haverá impacto", disse Cleuza Repulho, do Movimento pela Base Nacional Comum.

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