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O mundo nunca conheceu tão grande deslocamento de terra e de pedras como na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no berço do rio Xingu, no Pará. Pode-se encarar esse feito como uma vitória de nossa engenharia.Mas não na segunda década do século 21, em que a revolução solar, os ganhos de eficiência dos geradores eólicos e as formas modernas de energia da biomassa mobilizam os melhores cérebros e as mais ousadas atividades empresariais.
Em matéria de energia, o Brasil encontra-se na idade da pedra, ou seja, naquela em que se produz energia removendo rochas e desviando rios. Enquanto a vanguarda tecnológica global se apoia na física quântica e na revolução dos semicondutores, nós continuamos insistindo na energia mecânica da pressão da água sobre turbinas.
Esse contraste se torna trágico quando se examinam as consequências do que se ergue em Belo Monte. É uma fonte de energia considerada barata, mas o custo só é baixo por escamotear perdas irreparáveis.
Uma delas refere-se ao patrimônio socioambiental da Volta Grande do Xingu. Belo Monte é o mais claro exemplo de uma tecnologia que opera na natureza como um exército inimigo.
Ao desviar o curso do Xingu, alteram-se as oscilações naturais de seu nível e destrói-se o equilíbrio que permitiu sua extraordinária biodiversidade, sobre cuja base floresceram comunidades indígenas e ribeirinhas com cultura fundamentada no respeito à floresta e ao rio.
A população que está além da barragem não será inundada, mas verá seu rio e suas possibilidades de sobrevivência minguarem. No entanto, não é sequer considerada objeto de compensação financeira pelo consórcio que lidera a obra.
Outra perda é de natureza política. Belo Monte fortalece um modelo de obra gigantesca que concentra energia num só local para depois distribuí-la. O prejuízo democrático é duplo. Primeiro, como a obra envolve basicamente atores públicos contratando grandes empreiteiras, as chances de corrupção são imensas, e seus indícios já se revelam em depoimentos prestados na Operação Lava Jato.
Em segundo lugar, energia e poder vão continuar juntos, enquanto deixam de ser sinônimos em vários países. A revolução solar abre caminho a formas eficientes e descentralizadas de geração de energia a partir dos próprios domicílios, fábricas, fazendas e escritórios.
Nos Estados Unidos, a energia solar distribuída já é, em vários Estados, mais barata que as fontes convencionais. Na Alemanha, em julho, houve dias em que mais de 70% da força gerada veio de fontes renováveis, cuja propriedade é de associações e indivíduos. E tudo isso num país com menos área ensolarada que o Brasil.
Está para ser concedida a licença de operação de Belo Monte. Será um crime se ela for concedida sem que as condicionantes em que se apoia sejam cumpridas, como mostra o importante dossiê produzido recentemente pelo Instituto Socioambiental. Mas crime maior é glorificar-se da permanência na idade da pedra, aprovando as hidrelétricas do rio Tapajós.
Ingressar na era da revolução solar é o primeiro passo para que o crescimento brasileiro deixe de ter por base energética a destruição da natureza e do patrimônio cultural dos povos que mais dela cuidam.
RICARDO ABRAMOVAY, 62, é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. É autor de "Muito Além da Economia Verde" (ed. Planeta Sustentável) e organizador de "Biocombustíveis - A Energia da Controvérsia" (ed. Senac)
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