(Artigo)
À véspera de entrarmos no terceiro centenário como nação independente, podemos olhar para o passado e, orgulhosos, mostrarmos aos nossos antepassados o país que fizemos, ao mesmo tempo em que, com vergonha, mostrarmos aos nossos descendentes o Brasil que deixaremos para eles. O diálogo com o passado pode ser gratificante, com o futuro é preocupante.
Nestes anos próximos ao bicentenário, conseguimos atingir um PIB de R$ 5,9 trilhões que nos deixam entre os nove países mais ricos do mundo; é um resultado animador, mas se olharmos para as características deste produto, vemos que até hoje mantemos a produção limitada aos bens primários da agricultura, da mineração e de uma indústria metalmecânica. Salvo exceções, não estamos deixando uma economia inovadora, capaz de enfrentar os desafios da inovação científica e tecnológica que caracterizará a economia do futuro.
Esse produto, entretanto, deixa-nos em 77ª posição quando consideramos o PIB per capita; comemoramos a riqueza dos mais de 200 milhões de brasileiros, mas nos envergonha deixar a renda per capita ao ano em apenas U$ 7,6 mil por brasileiro. Ainda mais grave, estamos em 7º lugar, de baixo para cima, nos indicadores de distribuição de renda entre 127países.
Temos de reconhecer que continuamos como uma das mais perversas sociedades do mundo; faz 128 anos que abolimos a escravidão explícita, mas não fomos capazes de incorporar seus descendentes negros menos pobres em uma mesma família nacional. Demos um salto nas últimas décadas, ao ponto de reduzir bastante o flagelo da fome endêmica, mas não elevamos nossas massas ao acesso a saneamento, água, saúde e educação de qualidade.
Mais grave, nestes 200 anos, fizemos a mais violenta sociedade deste final de século: cerca de 59 mil pessoas são assassinadas por ano, outras 45 mil são mortas por acidentes de trânsito; deste total, 10 mil assassinatos são de crianças e adolescentes. Este quadro parece se agravar no futuro deixando, daqui para frente, um quadro de guerra civil sem bandeiras, sem propostas como violência pela sobrevivência, sem respeito às leis. Mais que isto, tememos um processo de desarticulação da sociedade brasileira dividida em corporações, gangues, bandos, sem sentimento de solidariedade patriótica, sem aglutinação; pedimos desculpas aos descendentes porque não fomos capazes de criar instrumentos de aglutinação social.
Fizemos uma revolução urbana em proporções nunca vistas no mundo. Em 60 anos, nossa demografia passou de 36% para 83% vivendo na cidade; fizemos "monstrópoles", não metrópoles: divididas entre condomínios e favelas em uma triste "apartação".
E sabemos que tudo isso é o resultado, sobretudo, do abandono da educação, negada por quase todos os dois séculos anteriores para a imensa maioria pobre e oferecida de forma insuficiente para a minoria dos ricos.
Depois de dois séculos, apesar das estatísticas que nos orgulham, olhamos o passado, de que nos últimos 30 anos chegamos ao patamar de 93% de crianças matriculadas; mas reconhecemos que este número não leva em conta os poucos deles que frequentam, assistem, permanecem e aprendem; em relação aos antepassados, comemoramos o fato de que 6,5 milhões se matriculam em faculdades, mas deixaremos para o terceiro milênio 13 milhões de analfabetos, incapazes de ler até mesmo o lema de nossa bandeira; deixaremos no máximo 10% a 20% terminando um ensino médio de razoável qualidade, colocando o Brasil na 58ª posição entre os 64 países avaliados pela OCDE.
O mais grave é chegarmos ao final do segundo centenário, sem percebermos que a educação é o único viaduto para entrarmos no terceiro. Este talvez seja nosso maior fracasso: a falta de consciência da importância da educação de qualidade e com qualidade igual para todos.
Os dez anos de funcionamento do movimento "Todos pela Educação" é prova de nosso fracasso e nosso êxito: em uma sociedade que desse importância à educação, não seriam necessários movimentos da sociedade civil como este; no Brasil real sua existência mostra que estamos despertando para a necessidade de educação como condição para ingressarmos no nosso terceiro século de país independente.
Sem isso, daqui a 100 anos, outros olharão para trás se perguntando por que os antepassados de 2016 não fizeram o que era preciso, mesmo com a atenção de entidades como "Todos pela Educação".
» Cristovam Buarque -Professor emérito da UnB e senador pelo PPS-DF
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