Docente do departamento de Educação da UFSCar, Maria Carla Corrochano fala ao ‘Nexo’ sobre o novo protagonismo do movimento de ocupação de colégios
O movimento de ocupação das escolas não pode ser mais caracterizado como um conjunto de manifestações isoladas. Nas semanas recentes o número de escolas ocupadas vem crescendo em todo país. Nos últimos dias, universidades passaram a ser palco do mesmo tipo de manifestação, como é o caso da Universidade Federal de Goiás e da Universidade de Brasília.
As ocupações que tiveram início em novembro de 2015, em São Paulo, em protesto contra uma política estadual, foram assumindo novas causas e mostram vitalidade como ferramenta de protesto e reivindicação. Em um cenário de desqualificação e disputa pelas arenas políticas, os estudantes secundaristas se colocam como protagonistas do debate sobre os rumos da educação pública no país. A reorganização escolar no primeiro momento em São Paulo e as propostas de emendas constitucionais sobre a reforma do ensino médio e sobre o teto de gastos para o governo federal, nacionalmente, estão no centro da agenda de reivindicações.
“A experiência da democracia, o acesso a direitos sociais e a maior presença desses jovens na escola parecem elementos fundamentais para compreensão dos novos elementos desse protagonismo”. Mas as ocupações são também alvo de críticas, não são unanimidade entre os estudantes e conseguiram despertar a solidariedade de apenas uma parcela da sociedade.
A interlocução com os governos tem sido conduzida, na maioria das vezes, pela polícia, com relatos de ações violentas de policiais em alguns casos. Em alguns Estados o Judiciário tem interferido em favor da desocupação das escolas, às vezes de forma questionável. A proximidade do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que acontece nos dias 5 e 6 de novembro, coloca ainda mais pressão sobre as ocupações.
O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela prova, informou na terça-feira (1º) que de 191,4 mil dos 8,7 milhões de inscritos no exame não poderão realizar a avaliação na data prevista em função das ocupações. São 304 escolas listadas como locais de provas que estão ocupadas. Na quarta-feira, o Ministério Público Federal do Ceará solicitou a suspensão da prova em razão das ocupações.
A persistência e extensão do movimento, no entanto, sugere que esses são atores políticos que vieram para ficar. Do ponto de vista da prática política, os estudantes sinalizam novas formas de mobilização.
Nesta entrevista para o Nexo, a doutora em Educação Maria Carla Corrochano, professora do departamento de Ciências Humanas e Educação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), fala sobre o que caracteriza o movimento e suas reivindicações, reflete sobre suas formas de interação com o Estado e sociedade e discute, entre outras coisas, quais os desafios colocados para a juventude no Brasil hoje.
Hoje temos diversas escolas ocupadas em todo país em um momento onde o tema da educação está no centro da agenda política. A juventude como um ator político: há algo de novo nesse protagonismo?
MARIA CARLA CORROCHANO Podemos afirmar que não é a primeira vez que a juventude assume um lugar de protagonismo importante na luta política no país, mas há alguns elementos novos nesse protagonismo. Mas antes de falar desses aspectos, acho importante fazer duas considerações: em primeiro lugar, a juventude não é uma unidade, um todo homogêneo, ou seja, ao falar de jovens é preciso lembrar que os jovens são diversos e vivem experiências bastante desiguais a depender de sua classe social, gênero, cor e raça, dentre outros aspectos. Há também uma diversidade de posicionamentos políticos, muito presente entre os jovens hoje, que pode ir dos posicionamentos mais progressistas aos mais conservadores, como também observamos na sociedade como um todo. Ou seja, a participação e o protagonismo juvenis não são dados naturais, nem podemos dizer que os jovens são revolucionários ou conservadores por natureza, retomando as palavras de Karl Mannheim. De todo modo e ainda seguindo esse mesmo autor, a juventude enquanto momento da vida ainda pode ser potente para a participação e o engajamento, mas isso depende fortemente do contexto histórico e social. Assim, é importante dizer que quero aqui falar do novo no protagonismo de jovens estudantes de escolas e universidades públicas que estão ocupando mais de 1.000 escolas ou universidades contra medidas autoritárias de diferentes governos e mais recentemente contra a Medida Provisória 746/2016 [de reforma do ensino médio] proposta pelo Ministério da Educação. Se voltarmos um pouco na história do país, não podemos esquecer a força do movimento estudantil na luta contra a ditadura militar nos anos 1960 e 1970, mas ali foram os estudantes de classe média e alta os protagonistas das lutas. Hoje vemos uma parcela significativa de jovens estudantes das camadas populares nesse protagonismo. De fato, desde a década de 1990 um conjunto importante de pesquisas tem contribuído para evidenciar um conjunto amplo e diverso de ações coletivas protagonizadas por jovens e principalmente por jovens moradores das periferias urbanas e também do campo. Ou seja, há algum tempo temos observado o protagonismo de coletivos juvenis em diferentes periferias, mas isso parece ganhar mais força recentemente, nas ocupações. É fundamental dizer que esses jovens estudantes nasceram na democracia e puderam acessar um conjunto de direitos sociais nos últimos anos, especialmente o direito de acesso à educação. A experiência da democracia, o acesso a direitos sociais e a maior presença desses jovens na escola parecem elementos fundamentais para compreensão dos novos elementos desse protagonismo. Um outro aspecto também importante é o uso intensivo das redes sociais, característica importante das manifestações juvenis recentes.
Essa é uma movimentação que começou no ano passado e vem ganhando corpo e visibilidade. Mas é nacional, descentralizada e parece fazer e pensar a política de outra maneira. É possível falar em um ‘movimento’ nos moldes tradicionais?
MARIA CARLA CORROCHANO Ao que parece estamos diante da constituição de uma nova cultura política, trata-se de uma outra forma de fazer movimento, mas é importante dizer que isso não significa a negação de movimentos nos moldes tradicionais. Considerando a face mais visível das ações, prefiro dizer que estamos diante de ações coletivas que apresentam um novo modo de fazer e de pensar a política. Com isso não quero dizer que as ações não contenham elementos de formas tradicionais de participação e que neguem os movimentos mais tradicionais, mas é possível perceber novas práticas e novos repertórios caracterizados por uma predileção pela ação direta, pela recusa das formas hierárquicas de mobilização e por certo distanciamento dos movimentos e organizações políticas tradicionais. Não é a recusa da política, mas é a proposta de fazer política de uma outra forma, com novas estratégias e linguagens, diversas dos mecanismos tradicionais de participação. É preciso dizer que os estudantes entendem as ocupações como uma das ferramentas de luta. Isso esteve muito presente nas ocupações das escolas em São Paulo, por exemplo, que acompanhei mais de perto no final do ano passado. A decisão de ocupar as escolas veio depois de várias tentativas de mobilização, tais como passeatas, abaixo-assinados, dentre outros mecanismos. Diante da recusa de abertura de diálogo por parte da Secretaria Estadual da Educação, foi necessário uma estratégia de maior impacto. Este ano ocorre o mesmo. Sem estabelecer qualquer mecanismo de escuta e diálogo com estudantes, docentes e outros atores e desrespeitando boa parte do que havia sido construído até então, o Ministério da Educação decide apresentar uma Medida Provisória de Reforma do Ensino Médio (MP 746) que altera profundamente esse nível de ensino, tanto do ponto de vista dos recursos, quanto do ponto de vista do currículo. Mas os estudantes também estão ocupando escolas e universidades contra o ataque a um conjunto de direitos sociais promovido pela PEC 241 [PEC do Teto], agora PEC 55 tramitando no Senado, e pela proposta de eliminar o debate político, no sentido amplo do termo, das escolas. Eles e elas querem a política na escola e estão dizendo isso claramente nas ocupações.
Quais os desafios para o Estado na relação com esses atores e suas demandas? E a reação da sociedade diante do movimento secundarista? Como você avalia que a interlocução se deu até agora?
MARIA CARLA CORROCHANO Essa não é uma demanda recente e tivemos alguns avanços nessa direção nos últimos anos. No entanto, o que vemos nesse momento é a completa ausência de diálogo. Desde a proposta de reorganização das escolas pelo governo do Estado de São Paulo e agora com a imposição da Reforma do Ensino Médio por meio de uma medida provisória, as mudanças estão sendo impostas, decididas de maneira unilateral , desconsiderando completamente os atores e o que vinha sendo construído pelas entidades acadêmicas, conselhos e fóruns de educação.
Além disso, ao invés de garantir o direito ao protesto e à participação, o governo federal tem se utilizado de vários recursos para desmobilizar e perseguir os estudantes. A Secretaria de Educação Profissional do Ministério da Educação solicitou recentemente o nome dos estudantes aos reitores dos institutos federais em uma estratégia clara de individualizar as condutas e pedir reintegração de posse. Além disso, também não vai realizar o Enem nas escolas ocupadas. O que isso significa? O governo, além de não abrir espaço de diálogo com os estudantes e outros atores, contribui para criar um clima de medo, perseguição e para acirrar os conflitos. Soma-se a isso o impressionante silêncio da mídia tradicional: são mais de 1.000 unidades de ensino ocupadas até o momento, mas até hoje nenhum dos grandes jornais e redes de televisão noticiaram as ocupações. Fica evidente que se trata de uma articulação entre diferentes segmentos para não dar visibilidade e para criminalizar as ocupações. Não por acaso observa-se maior resistência a essas ocupações por parte de alguns grupos. Em São Paulo também observamos resistências, nem todos os pais e estudantes foram favoráveis às ocupações, mas aos poucos esse apoio cresceu, levando, inclusive, à suspensão da reorganização [curricular] proposta naquele momento. Agora a situação está mais difícil. Não existe interlocução. Até o momento observaram-se apenas muitas ameaças e isso é preocupante.
Quais são as questões fundamentais e os desafios para a juventude no Brasil hoje?
MARIA CARLA CORROCHANO Os desafios não são pequenos. Acho que agora, diante dos acontecimentos recentes, é garantir a continuidade e o aprofundamento das conquistas dos últimos 20 anos. Essa geração nasceu na democracia e o desafio é aprofundar essa democracia e construir mecanismos para além da democracia representativa. Também persistem desafios em relação aos direitos sociais. Se essa geração teve mais acesso à escola do que seus pais, é preciso ampliar ainda mais esse acesso, ainda temos 50% de jovens que não concluíram o ensino médio, por exemplo, além das questões da qualidade. A defesa da escola pública, gratuita, de qualidade é um desafio. A permanência e ampliação do direito à saúde, à assistência social, ao trabalho decente e à participação social também estão na pauta. Esses são desafios não apenas para a juventude, mas também para o mundo adulto. Não podemos deixar os e as jovens solitários nessa luta.
Na sua avaliação, qual o impacto que esse tipo de mobilização, as ocupações, pode ter no cenário político atual?
MARIA CARLA CORROCHANO Acho que as ocupações já estão produzindo impactos importantes. Apresentam novas formas de fazer política, especialmente por meio da ação direta, questionam as estruturas hierarquizadas e verticalizadas, exigem que os sujeitos sejam ouvidos e considerados no processo de tomada de decisões. Podem contribuir para impedir os inúmeros retrocessos que estamos vivendo em nossa jovem democracia. Ao mesmo tempo, é preciso cuidado para não jogar toda a responsabilidade dessa luta nas ocupações. Mais uma vez, qual o lugar do mundo adulto e dos movimentos tradicionais nesse processo? As ocupações precisam de muito apoio e, além disso, do efetivo engajamento de cada um de nós. Há várias entidades, organizações da sociedade civil, movimentos, fóruns apoiando as ocupações e manifestando-se de diferentes formas contra os retrocessos que estamos atravessando, mas a compreensão e o diálogo com as mobilizações estudantis podem nos provocar a ir além dos mecanismos tradicionais de luta social.
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