Folha de S.Paulo, 22/11/2014
Afundada em má gestão e com os salários restringidos por lei, não há como atrair docentes jovens e geniais
Ele falava, eu sofria.
De um lado da mesa, o físico boa-praça Alan Guth (do Instituto de Tecnologia de Massassuchetts, MIT), então um jovem professor em rota rápida para a titularidade. Ele tinha sido contratado na esteira de uma teoria crucial, que formulara poucos anos antes.
Do outro, em pânico e suando aos litros, este colunista, na época repórter de "Ciência" da Folha, em temporada de estudo nos EUA. Com paciência sem fim, Guth explicava, e eu pouco entendia, a teoria do universo inflacionário.
Segundo essa tese tão elegante, elaborada por ele, em um instante infinitesimal depois do Big Bang a gravidade se transformou em antigravidade e o universo se expandiu por um fator igual ao número 1 seguido de 30 zeros. Era a solução para um monte de problemas da cosmologia. Por exemplo: por que o universo é tão plano e homogêneo? Uma rapidíssima expansão primordial explicaria isso.
Bem, isso eu sei agora, 25 anos depois (e nem sei se expliquei direito). Na época, repórter iniciante e formado em química, eu mal sabia que existia um ramo da física chamado cosmologia. Que dirá entender de universo inflacionário. Que dirá ser capaz de entrevistar decentemente Alan Guth.
Penando na parte científica, eu anotava, desesperado, cada palavra. Ainda que eu não entendesse nada, se fosse capaz de reproduzir fielmente o que o cientista dizia, pelo menos a matéria sairia sem bobagens. Acho que foi publicada. Honestamente não me lembro.
De toda a conversa, pouco registrei da cosmologia em si, mas nunca me esqueci da história de vida que Alan Guth me contou. No meio acadêmico brasileiro, uma trajetória que seria impossível.
Quando teve a ideia do universo inflacionário, em 1981, Guth já estava no quarto (!) pós-doutorado. O nome é bonito, "pós-doutorado", soa como algo para além do máximo, um ápice para muito poucos.
Na prática, é incerteza e aflição. O sujeito já tem título de doutor, mas ainda não encontrou o que fazer. Vai para o "pós-doc". Quando termina, espera-se que arrume emprego de professor em alguma universidade. Ou isso, ou um vazio abismal.
No desespero, se nada acontece, embarca em um segundo "pós-doc", ganhando tempo enquanto espera por alguma instituição que decida contratá-lo, ou então que ele desista da carreira acadêmica e abra um food truck de comida peruana, uma academia de maracatu etc.
Guth estava assim: em mais um "pós-doc", sem destaque entre seus pares, pensando em abandonar a ciência. Até que saiu o artigo em que concebia o universo inflacionário.
A repercussão foi enorme. Seguiu-se uma situação impensável no Brasil: universidades de primeiro time faziam fila para contratá-lo. Uma proposta melhor do que a outra de salário, benefícios e oportunidades de pesquisa. Ele optou pelo MIT, mas poderia ter escolhido outro lugar de prestígio equivalente.
Agora, imagine a USP --disparada a melhor universidade do Brasil, mas de limitada projeção internacional -- tentando atrair um jovem gênio do nível de Guth. Oferecer um cargo alto, de cara? Sem chance. O infeliz teria de seguir os passos paquidérmicos da carreira universitária no Brasil, preparando toneladas de material a cada etapa de "promoção", esperando abertura de vaga, e torcendo para que vencer o concurso público fosse mesmo questão de mérito, e não uma ação entre amigos.
A USP também não poderia oferecer um salário de nível internacional, já que agora, por lei, o máximo é R$ 20 mil por mês (e só depois de anos e anos de dedicação). É pouco para a ciência de primeira linha.
Domingo passado, depois de uma vitória na Justiça, a Folha publicou os vencimentos dos professores da USP. Entre 6.000 docentes, um só ganha R$ 60 mil, mas foi esse valor, uma distorção sem valor estatístico, que tanto repercutiu. Como se os docente da USP recebessem todos supersalários e vivessem como nababos.
Vale notar que, ao mesmo tempo em que se condena a USP por uns poucos salários altos, cobra-se dela que tenha importância mundial, faça pesquisa de relevância e atraia grandes cientistas.
Difícil. Com desastres sucessivos de gestão, greves constantes (principalmente de funcionários muito bem remunerados) e incapaz de oferecer condições atraentes para talentos estrangeiros, a USP corre o risco de resignar-se a um futuro paroquial. Os herdeiros científicos de Alan Guth vão continuar longe daqui.
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