RIO - Um jovem negro sai de casa. Na rua, no baile, na quadra, no ônibus, encontra amigos invisíveis. As roupas, a pipa, os fones e a bola se movem sem que se veja quem está ali. Correria, gritaria, um tiro. O jovem cai. Assim o vídeo de lançamento da campanha “Jovem Negro Vivo”, da Anistia Internacional, alerta para um problema antigo, mas ainda invisível para a maioria da socidade: os homicídios de jovens negros no Brasil.
Em todo o país, 7 jovens são mortos a cada duas horas _ o tempo de uma sessão de cinema. São 82 jovens mortos por dia, 30 mil por ano, todos com idades de 15 a 29 anos. E, entre os jovens assassinados, 77% são negros (somando aqui os pretos e pardos, pelos critérios do IBGE).
Os números de homicídios são do Mapa da Violência, estudo realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Weiselfisz com base em dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. A versão 2014 do Mapa traz as últimas informações disponíveis, referentes ao ano de 2012, e foi realizada em conjunto com a Secretaria Nacional de Juventude da Secretaria-Geral da Presidência da República e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
A campanha da Anistia, que usa os números do Mapa, será lançada hoje no Aterro do Flamengo, no Centro do Rio. Esculturas de arame lembrando jovens mortos, os tais invisíveis, e um desafio entre grupos de passinho, a dança frenética que virou mania entre adolescentes e crianças, vão tentar atrair a atenção da população para o problema.
“Os dados ainda são escandalosos. Mas o problema parece que não entra na agenda política nacional. O objetivo da campanha é tirar esse tema do armário. Hoje, tudo leva a crer que a sociedade não se importa com isso”, afirma o sociólogo Átila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil e um dos coordenadores da campanha Jovem Negro Vivo.
Para quem vai ao Aterro passear ou perder calorias extras, o duelo de grupos de passinho pode parecer só diversão. Mas a alegria da dança é uma das apostas da campanha para chamar a atenção para a vida de jovens da periferia que, como os acrobatas do passinho, são mais pobres, estão mais longe da escola e mais perto de situações de risco.
Em dez anos, de 2002 a 2012, os homicídios de jovens negros cresceram 32,4%; os de jovens brancos, 32,3%. Considerando a relação com a população, entre jovens negros a taxa de homicídios por cem mil habitantes cresceu 6,5%; entre jovens brancos caiu 28,6%.
No Rio, os números são um pouco melhores. A taxa de homicídios no conjunto da população do estado caiu 50%, uma queda consistente, de 2002 a 2012. Com isso, as taxas de homicídios entre jovens também caíram 51,7%. E as mortes de jovens negros tiveram redução maior ainda, de 65,4%. Mas ainda foram 1.680 jovens negros assassinados em 2012 no estado.
Nos últimos dois anos, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão do governo estadual, os homicídios voltaram a cair em agosto e setembro, após 20 meses de altas seguidas. Em setembro, a queda foi de 9,5% em comparação com o mesmo mês do ano passado.
“Mesmo assim, o Rio ainda precisa intensificar suas políticas. Muita criatividade está surgindo nesses territórios mais pobres, e queremos aproveitar isso, dar ênfase à juventude da periferia. Há várias histórias interrompidas. É como se o jovem negro pobre estivesse destinado a morrer”, diz Átila Roque.
O lema da campanha é “Mais chocante que a realidade, só a indiferença. Você se importa?” Quem se importa com tantas mortes, pede a campanha, pode assinar um manifesto reivindicando políticas públicas mais efetivas no combate à violência e à mortalidade de jovens negros. Voluntários estarão no Aterro colhendo assinaturas.
CONTEXTO
O Mapa da Violência tem um capítulo intitulado “A Cor dos Homicídios”, que detalha metodologia e evolução dos assassinatos de jovens negros de 2002 a 2012. Mostra, por exemplo, que na população total, as taxas de homicídio entre brancos caem 23,8%; entre negros, crescem 7,1%. Em 2002, proporcionalmente, morreram 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice sobe para 146,5%.
O assassinato de jovens negros é parte de uma estatística da qual o Brasil não se orgulha: a explosão da violência nos últimos 35 anos.
O país teve 56.337 pessoas assassinadas em 2012, o maior número absoluto de crimes desde 1980. A taxa de homicídios, que leva em conta o crescimento populacional, era de 11,7 homicídios por cem mil habitantes em 1980. Foi crescendo até 2003, quando chegou a 28,9. A partir de 2003, começou a cair por causa das campanhas de desarmamento e de políticas que reduziram os homicídios em alguns estados. Recomeçou a subir em 2007, chegando a 29 por cem mil habitantes em 2012.
Dos 56 mil assassinatos registrados em 2012, mais da metade (30 mil) teve jovens como vítimas. E, se na população não jovem (menos de 15 anos e mais de 29 anos) só 2,0% dos óbitos foram causados por homicídio, entre os jovens os homicídios foram responsáveis por 28,8% das mortes acontecidas no período 1980 a 2012.
SEM EXPLICAÇÃO
Das mortes invisíveis de jovens negros no Rio, uma das que teve maior visibilidade foi a de Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, dançarino do programa “Esquenta!”, da TV Globo. Em abril deste ano, Douglas foi morto com um tiro nas costas durante um confronto entre policiais militares e traficantes no complexo do Pavão-Pavãozinho- Cantagalo, em Copacabana.
A autoria do crime até agora não foi esclarecida. Em julho, O GLOBO mostrou que o tiro que matou DG partiu de uma pistola calibre .40, arma de uso exclusivo das polícias e que supostamente foi disparada por um soldado da PM durante a troca de tiros.
O caso provocou protestos de moradores do morro e apresentou à cidade a técnica de enfermagem Maria de Fátima da Silva, mãe do dançarino, que se transformou em mais um dos símbolos de mães que cobram justiça para as mortes de seus filhos. Fátima organizou passeatas cobrando providências e alimenta o site do filho. Virou personagem central do documentário “Mater dolorosa”, de Tamur Aimara e Daniel Caetano, sobre os protestos que se seguiram à morte de DG.
“Mataram meu filho, meu caçula. Era um filho bom e agora não está mais comigo. E a morte dele segue sem punição”, lamenta.
Anistia lança campanha contra homicídios de jovens negros
THAISE CONSTANCIO - O ESTADO DE S. PAULO
09 Novembro 2014 | 00h 01
Mapa da Violência mostra que, dos 56 mil assassinatos em 2012, 30 mil tinham de 15 e 29 anos. Deste total, 77% eram negros
RIO - Com funk, rap, batalhas de passinho e competições de skate na programação, a Anistia Internacional lança neste domingo, 9, a campanha “Jovem Negro Vivo”, com o objetivo de chamar a atenção para o aumento dos índices de homicídios de jovens negros nas favelas e periferias brasileiras. O projeto é baseado nos dados do Mapa da Violência 2014, que mostra que, dos 56 mil homicídios no País em 2012, 30 mil eram jovens entre 15 e 29 anos. Deste total, 77% eram negros.
Maceió foi a capital brasileira com a maior taxa de homicídio juvenil em 2012: 218 mortes por 100 mil habitantes, independentemente da cor. João Pessoa vem em seguida, com 177,8, e Fortaleza aparece em terceiro lugar, com 176,6 mortes violentas.
A capital de Alagoas também aparece na frente quando considerados apenas os jovens negros mortos: são 327,6 mortos para cada 100 mil. São Paulo tem a menor quantidade de mortes entre negros, com 42,8. Entre os brancos, as taxas de homicídio são bem menores. Cuiabá aparece na frente, com 94,6 mortes e Rio Branco tem o menor índice, com quatro mortes em 2012.
Para o diretor executivo da Anistia Internacional, Átila Roque, há uma “naturalização do extermínio” no País. “É uma situação de calamidade. A violência letal no Brasil é extremamente seletiva, só atinge jovens nas periferias e favelas e neste universo seleciona por cor e raça. Não é natural que jovens morram de forma violenta antes dos 20 anos. Perdemos uma geração inteira e criamos uma cultura que naturaliza a barbárie e a violência”, disse.
A campanha será lançada no Aterro do Flamengo, uma grande área de lazer na orla carioca, e incluirá música, dança e uma exposição com “manequins invisíveis”, referência à “indiferença” e à “insensibilidade” que o tema tem sido tratado no debate social, explicou Roque. Haverá também o manifesto “Queremos Ver os Jovens Vivos”.
“Esse tema não é exclusivo dos jovens ou do movimento negro, mas de toda a sociedade. Queremos valorizar o protagonismo dos jovens em defesa de seus direitos e chamar a atenção para a importância de o País criar condições para que parte expressiva da juventude não tenha sua história interrompida pela violência.”
Até junho de 2015, a exposição será levada para favelas e periferias de várias cidades do País. Em seguida, será lançado um relatório internacional para mostrar as causas da violência contra os jovens negros. O objetivo é que sejam criadas políticas públicas integradas e inclusivas.
O diretor da Anistia Internacional ressalta que, apesar das melhorias sociais, da redução da pobreza e das desigualdades, a estabilidade das taxas de homicídios nos últimos dez anos esconde um dado importante: a quantidade de jovens brancos mortos caiu 32,3%, enquanto entre os negros cresceu 32,4%.
“Queremos que a campanha no Brasil nos ajude a pensar e repensar a sociedade. Mostramos que nos importamos com as mortes desses jovens e não podemos admitir que essa realidade dura ainda mais.”
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