Narcotráfico está rindo da repressão às drogas
Para presidente do Uruguai, legalização da maconha permite que consumidores sejam tratados pelo estado
Se continuarem respondendo ao narcotráfico pela via da repressão, os governos latino-americanos estarão cultivando "uma esplêndida derrota".
É a opinião do presidente uruguaio José "Pepe" Mujica, 79, que, entre outras leis de cunho liberal, aprovou durante sua gestão a regulação da produção e do consumo da maconha.
O partido de Mujica, a esquerdista Frente Ampla, é o favorito para vencer as eleições do próximo domingo no Uruguai, reconduzindo ao cargo o antecessor do presidente, o também líder socialista Tabaré Vázquez.
Mujica, que deixará o cargo em março, recebeu a Folha em seu sítio, nos arredores de Montevidéu.
"Balanço de governo? Não sou dono de armazém, não faço balanços, é preciso olhar para a frente", disse, bem-humorado, no banco do jardim da modesta casa em que vive com a mulher e os cães.
Folha - Como avalia a implantação da lei da maconha?
José "Pepe" Mujica - Não gostamos da maconha nem de nenhum vício. Mas pior que a maconha é o narcotráfico. Pela via repressiva, o narcotráfico está se matando de rir. Cada vez se trafica mais, se gasta mais dinheiro em polícia, em colocar gente nas prisões. Estamos cultivando uma esplêndida derrota.
Todos os governos da América Latina, desse ponto de vista, são Estados falidos.
Cada vez armamos aparatos maiores para reprimir, cada vez temos mais gente presa e cada vez há mais tráfico de drogas!
Nós queremos achar um outro caminho. A legalização parcial permite identificar os consumidores e assim aconselhá-los e tratá-los.
Também considera positivo o saldo da legalização do aborto?
Existe uma tradição política no Uruguai de colocarmos os problemas sérios sobre a mesa, não escondê-los.
Neste país, em 1914/15, o Estado reconheceu a prostituição e fundou uma universidade feminina para que as famílias conservadoras se animassem a mandar suas filhas estudarem. O Estado também nacionalizou o álcool, e durante 50 anos era o único a produzir aguardente.
Assim estamos encarando o tema do aborto.
Ninguém é a favor do aborto, mas, por muitas razões, as mulheres continuam realizando-o. Se as deixássemos sozinhas, seria uma irresponsabilidade. Muito mais se elas são pobres.
Nós oferecemos o serviço, mas a primeira ação é tratar de dissuadi-la e de oferecer apoio. Assim salvamos mais vidas. Se as mulheres persistem em sua decisão, nós o realizamos, e assim lidamos melhor com os problemas que ocorrem se o aborto se faz de modo incorreto. Ou seja, há um custo humano menor.
Isso quer dizer que essa política dá resultado do ponto de vista do princípio da defesa da vida, exatamente ao contrário do que dizem os opositores.
O que funcionou e o que não funcionou nesses dez anos do governo Frente Ampla?
Bom, as pessoas continuam tendo o péssimo vício de morrer, e não podemos consertar isso (risos).
Mas, agora falando sério, o mais importante é que tínhamos 39% de pobreza, há dez anos, e agora temos 11%.
Tínhamos 5% de indigência, agora temos 0,5%.
Fizemos um avanço considerável, ainda que não tenha sido suficiente para eliminar a pobreza e a indigência.
Também demos resposta parcial a problemas importantes do futuro.
O Uruguai terá, em dez ou 15 anos, solucionado problemas de energia elétrica. Vamos ter em excesso para vender aos vizinhos.
Por outro lado, estamos atrasados em infraestrutura, porque a economia, o transporte e o movimento portuário cresceram muito e não fizemos investimento à altura que facilite o fluxo de mercadorias.
As medidas protecionistas do Brasil e da Argentina prejudicam o Mercosul?
O Brasil é protecionista com o resto do mundo, mas não tanto conosco, com os integrantes do Mercosul.
Já a Argentina é protecionista para todos.
Por outro lado, ela está passando por uma conjuntura econômica difícil.
Mas não concordo com a análise apocalíptica de que a Argentina vai se derrubar. Fiquei velho ouvindo isso e a Argentina segue.
O que o sr. acha da reeleição?
Não gosto e sempre me opus. Não pelo presidente, mas sim pela corte a seu redor. Não sou reeleicionista porque os presidentes emanam uma atmosfera de poder. E abaixo dessa atmosfera se cultiva um afã de poder e de estabilidade das pessoas que compõem o governo.
É bom varrer, passar a vassoura, colocar outros.
O que o sr. acha de seu estilo de vida ter ganhado tanta projeção internacional?
Me entristece. Porque nas repúblicas, em última instância, as decisões fundamentais são da maioria. Portanto, os governantes devem responder às maiorias, não às minorias.
Se minha forma de vida for a dos círculos economicamente privilegiados de meu país, ela não estará de acordo com o que vive a maioria.
Vivo como vive a imensa maioria do povo.
O sr. se arrepende da opção pela luta armada?
Cada coisa tem seu tempo.
A América era outra América, o mundo era outro mundo. E éramos funcionais à época em que vivíamos. Hoje sou um pacifista extremo.
Antes podíamos pensar que havia guerras justas e injustas. Hoje sabemos que todas as guerras são injustas, porque os que pagam o maior preço são os mais humildes.
O sr. pensa naqueles que o torturaram?
Não, eu não cultivo isso. Não me dedico a viver escravizado, nem pela Justiça nem pelo ódio, porque minha vida segue adiante. Mas reconheço que sou bastante excepcional, sou um lutador social e um lutador político.
Aqueles que me torturaram e me detiveram encarcerado, se não fossem eles, teriam sido outros. Eles estavam cumprindo uma função de poder reacionário naquele momento. Não posso me agarrar a isso até a morte. Se eu quiser me vingar, não vou estar em condições de ganhar politicamente o que vem adiante. Adoto a tática mais conveniente para avançar.
Mas reconheço que tem gente que não vê essas coisas politicamente e pensa de uma forma diferente.
Isso não significa que eu me esqueça do que aconteceu. Há coisas que não podemos esquecer, mas temos que carregar e aprender a andar com elas.
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