30 de setembro de 2016

Implantar um currículo espartano, através de uma MP, está longe do ideal, Fernanda Torres


Tenho um aluno do segundo ano do ensino médio em casa. Dono de um raciocínio lógico capaz de solucionar questões complexas de matemática, ele aprende com facilidade e demonstra aversão pelo atual sistema de ensino.
Filho, neto e sobrinho de autodidatas, todos ligados às artes, meu rebento reclama do pouco tempo reservado à sociologia, à filosofia e à literatura, e se ressente de um intercâmbio maior entre as disciplinas.
Tédio e raiva resumem o seu sentimento com relação à escola.
Mangabeira Unger, em entrevista ao programa "Diálogo", fez coro ao diagnóstico de que estudantes do século 21 frequentam salas de aula do século 19. Danilo Miranda, diretor do milagroso Sesc paulista, afirma que o currículo procura formar mão de obra e não cidadãos.
Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração de Marta Mello da Coluna de Fernanda Torres de 30 de setembro de 2016
Há, mesmo, algo de podre na educação.
Os colégios que não se enquadram no modelo competitivo do Enem correm o risco de soçobrar no mercado. Para garantir a boa colocação na lista de excelência, adestra-se os colegiais para o provão à partir do 1º ano do fundamental 2.
Dali para frente, triunfa um funil angustiado de múltiplas escolhas, onde pouco importa a curiosidade do aluno. O cardápio de matérias lembra o daqueles restaurantes que servem de estrogonofe à filé à cubana e mais entope do que alimenta, formando um exército de adolescentes paranoicos e enfadados.
A flexibilização do currículo é bem-vinda; mas o plano de dobrar o tempo de duração na carteira vitoriana, abolindo filosofia, sociologia, artes e esporte me espanta.
Quando visitei o Escorial, palácio construído por Felipe 2º nas cercanias de Madri, chamou-me a atenção os afrescos em homenagem às sete artes liberais, que ornam o teto da biblioteca.
Base do pensamento escolástico, criado nos monastérios medievais com o intuito de conciliar o ensino da fé e da razão, as artes da retórica, da dialética, da música, da gramática, da aritmética, da geometria e da astrologia pretendiam formar homens livres.
A filosofia, a arte e a sociologia são um grande antídoto para o grilhão da decoreba. Elas relacionam, como poucas cadeiras, o estudo de história, geografia, política, ciência, letras e matemática, desenvolvendo o diálogo, a criatividade, o raciocínio e a argumentação.
Meu filho, que é um furioso, no sentido romântico da palavra, reagiu aos cortes dizendo que o objetivo das medidas é escravizar a rotina de estudo para impedir que os alunos pensem.
A Finlândia reduziu o tempo de escola, aposentou o dever de casa, descartou a múltipla escolha e galgou o primeiro lugar no ranking de educação mundial.
Apostar no ócio criativo num país como o nosso, com problemas de segurança, habitação, saúde e saneamento seria uma guinada arriscada, mas implantar um currículo espartano, que não considera a saúde mental e física dos alunos, através de uma MP, está longe do ideal.
Dentre todas as dúvidas práticas suscitadas pelas novas diretrizes, uma me perturba em especial.
Não há método que resista a um professor ruim. Se mal se consegue arregimentar quadros capazes de alfabetizar a contento, de onde surgirão os milhares de mestres não licenciados, dotados de notório saber, que preencherão as demandas de um horário integral no ensino médio?
Essa é a questão. 

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