1 de outubro de 2016

O debate sobre o currículo flexível na reforma do ensino médio

sala de aula
 A REFORMA PRETENDE PROMOVER UMA FLEXIBILIZAÇÃO DO CURRÍCULO ACADÊMICO

  • Beatriz Montesanti
  •  
    01 Out 2016 (NEXO














    No dia 23 de setembro, o governo federal divulgou seu plano para a reforma do ensino médio, última etapa da educação básica. Controverso, o projeto foi duramente criticado por setores educacionais por ser publicado como Medida Provisória, sem diálogo com a sociedade, e por tirar a obrigatoriedade de disciplinas como educação física e artes.
    Entre inúmeros outros pontos, a reforma pretende promover uma flexibilização do currículo acadêmico. O objetivo é que, assim, estudantes tenham maior autonomia em relação à sua formação, sendo atraídos para o estudo, já que poderão focar mais em seus temas de predileção. Segundo o governo, essa é uma forma de reduzir o grande índice de evasão escolar nacional.
    O princípio, que é aplicado em algumas escolas do Brasil e em sistemas educacionais pelo mundo, porém, também é alvo de críticas. Entenda por quê.

    O que significa flexibilizar o currículo

    Na prática, flexibilizar o currículo significa dar autonomia para os jovens escolherem as disciplinas que irão cursar, montando assim sua própria grade curricular. Isso pode ser feito de diferentes formas e intensidades.
    No geral, países que utilizam esse tipo de sistema em suas escolas estabelecem uma grade básica, que todos os estudantes devem obedecer, e ofertam disciplinas optativas, como artes, culinária e economia.
    A grade básica é em muitos casos composta por matemática, a língua nacional, uma matéria da área de ciências e outra de humanidades. Esse é o formato usado, por exemplo, pelo bacharelado internacional, qualificação que facilita o acesso a universidades estrangeiras. Nesses contextos internacionais, alunos são orientados de perto por professores e psicólogos para formarem a sua grade.
    texto da Medida Provisória publicada por Michel Temer não é preciso, porém, no que se refere a como essa flexibilização será implementada no sistema educacional brasileiro.
    Ele deixa a especificação das disciplinas a serem ministradas e de seus conteúdos à cargo das redes de ensino e do que for definido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - documento que apresentará o descritivo de conteúdos e saberes necessários para cada ano da educação básica. A Base está atualmente em fase de elaboração.

    O que diz o texto sobre a flexibilização

    Publicado numa edição extraordinária do “Diário Oficial”, no dia 24 de setembro, o documento determina que, a partir da metade do segundo ano do ensino médio, estudantes poderão escolher entre quatro “áreas de conhecimento”, além do ensino técnico:
    • Linguagem
    • Matemática
    • Ciências da natureza
    • Ciências humanas
    • Formação técnica e profissional
    Entende-se com isso que cada uma dessas áreas, supostamente, dará ênfase a determinadas disciplinas. O aluno que optar por “matemática”, por exemplo, terá mais aulas de exatas, enquanto o que optar por “ciências humanas”, terá  matérias como história e geografia.
    O texto não especifica, no entanto, quais serão as disciplinas a serem ministradas em cada área, deixando isso a cargo do que for definido pela BNCC, ainda em construção.
    O documento cita apenas português e matemática como disciplinas obrigatórias ao longo dos três anos do ensino médio. Segundo o professor Carlos Artexes, ex-coordenador-geral de Ensino Médio do Ministério da Educação, atualmente, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, não há disciplinas obrigatórias, mas conteúdos gerais que são tipicamente organizados em 13 disciplinas. 
    Em uma videoconferência com jornalistas realizada na sexta-feira (30), o secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, Rossieli Soares da Silva, esclareceu que ao menos 1.200 horas devem estar dedicadas aos conteúdos estabelecidos pela Base, podendo este conteúdo estar distribuído ao longo dos três anos do ensino ou concentrados no começo. O restante da carga horária - ao todo, de 4.200 horas - deverá ser reservado às escolhas individuais, com as disciplinas optativas.   

    Quais são as críticas

    A flexibilização do currículo nunca foi consenso entre educadores, mas é vista por muitos como algo que pode ser vantajoso, caso aplicada da forma correta. Além de dar autonomia aos jovens e atraí-los para a escola, como espera o governo, uma reforma bem elaborada tem o potencial de racionalizar o conteúdo que atualmente faz parte da grade do ensino, muitas vezes excessivo, principalmente devido a cobrança de vestibulares.
    Para Ricardo Fauzetta, do movimento Todos pela Educação, a reforma proposta pelo governo, em particular, pode ser positiva, mas isso dependerá de novas portarias publicadas pelo Ministério da Educação que definam melhor como ela será feita ou de propostas das redes estaduais.
    “Acho que o grande dilema agora é essa dosagem. Se eu escolher a área de matemática não vou ver mais nada? Não necessariamente. Acho que é um grande desafio criar esse currículo e, na minha opinião, sensacional poder desenhá-lo com essa liberdade”, disse Fauzetta aoNexo.
    Já para Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a divisão em “áreas do conhecimento”, que podem não ser ofertadas em todas as escolas, dará uma “falsa autonomia” ao estudantes, aumentando as desigualdades entre as instituições.
    “É importante esclarecer que isso estava sendo debatido, mas estava muito distante de encontrar um caminho que fosse promissor. A MP muda a continuidade do projeto anterior”, disse Cara ao Nexo.

    Entenda as críticas

    DESIGUALDADE DE OFERTA
    As redes de ensino de cada Estado serão encarregadas de implementar as novas medidas. Isso porque os governos estaduais são responsáveis pela grande maioria dos alunos do ensino médio (84% de cerca de 8 milhões no país).
    O texto da MP diz que os sistemas de ensino poderão “compor os seus currículos com base em mais de uma área prevista nos incisos”. Ou seja, as escolas e os Estados não são obrigados a ofertar todas as cinco áreas do conhecimento citadas anteriormente.
    Não se sabe ainda como isso será operado na prática, mas a questão preocupa analistas, pelo fato de que pode aumentar as desigualdades entre escolas e entre Estados, já que algumas podem ser capazes de oferecer apenas uma área, enquanto outras terão recursos para implementar todas. Alunos em escolas que não ofertam a área que gostariam de cursar, por exemplo, teriam que trocar de escola ou de região para seguir o trajeto desejado - processo ainda mais dificultoso para estudantes de baixa renda.
    “A reforma, em termos bem concretos, parece que é flexível, mas gera mais inflexibilidade”
    Daniel Cara
    Coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em entrevista ao Nexo
    FLEXIBILIZAÇÃO JÁ EXISTENTE
    Segundo Carlos Artexes, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, alterada agora pela Medida Provisória, era extremamente flexível no campo do currículo. A LDB atribuia autonomia às unidades escolares, que podiam definir o currículo em seu projeto pedagógico - desde que respeitando os conteúdos estabelecidos pela lei.
    “A questão do Brasil não é problema da lei, porque ela já era flexível, o que não avançou foram as condições, recursos. A população é iludida nesse sentido em achar que a Medida Provisória é que faz essa apelação”, diz.
    ACESSO AO VESTIBULAR
    No Brasil, boa parte do acesso às universidades públicas atualmente é feito pelo Enem, prova unificada elaborada pelo governo. O exame, portanto, provavelmente irá se adaptar às novas diretrizes, como o próprio governo já sinalizou ao anunciar a retirada do espanhol para 2017.
    Ainda assim, muitas instituições públicas e, principalmente, particulares, realizam seus próprios processos de seleção. Para Luís Serrao, essas universidades seguirão fazendo as cobranças de conteúdo que quiserem. “Elas não estão preocupadas em avaliar o ensino médio, mas sim em fazer a seleção dos melhores estudantes, e elas têm autonomia para fazer isso. A desigualdade de oferta vai pesar”, diz.
    FALTA DE ORIENTAÇÃO
    Outra grande preocupação dos críticos é a de que a reforma, em vez de dar autonomia ao estudante, apenas estará adiantando um processo de escolha difícil para os jovens nessa etapa da vida. Principalmente se, no interior das instituições, não houver uma estrutura adequada para uma orientação individualizada ao longo desse processo.
    “Já temos dificuldade de escolher uma formação. Há altas taxas de abandono em cursos de graduação por causa disso. Acho que adiantar essa escolha é adiantar com consequências futuras muito graves para o ingresso no Ensino Superior.”
    Luis Serrao
    Assessor da Ação Educativa, em entrevista aoNexo
    Serrao lembra como os principais interessados nesse processo, os estudantes, não foram ouvidos para a realização da reforma. “Durante o movimento de ocupações das escolas [feito pelos secundaristas], não vi nenhuma demanda de jovem falando que não queria estudar matemática. O que eles pediam era uma escola mais ampla, com formação política, discussão dialógica e com infraestrutura adequada.”

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