19 de janeiro de 2017

Eugenio Bucci: O poder paralelo venceu




Na noite de 25 de maio de 1992, uma segunda-feira, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, foi entrevistado no Roda Viva, da TV Cultura. Lembro-me bem, fui um dos entrevistadores. Já naquele tempo o crime organizado mandava nos morros cariocas. As autoridades desconversavam, minimizando a existência de um Estado paralelo que só iria crescer. O prefeito do Rio não fugia à regra.
Armando Nogueira também estava na bancada de entrevistadores. Depois de 25 anos no comando do jornalismo da Rede Globo, da qual se tinha desligado em 1990, ele conhecia de perto a tragédia da segurança pública no Rio. Foi, então, com naturalidade que perguntou: “Prefeito, parece que não há a menor dúvida que há uma condenação, no mundo inteiro, à chamada megacidade. E parece que a violência é um mal de todas elas, não há a menor dúvida. Mas no Rio de Janeiro nós temos um ingrediente que tem complicado nos últimos dez anos: este problema é o narcotráfico. Qual é a sua visão do problema do narcotráfico na geografia do Rio de Janeiro?”.
Enquanto o prefeito tomava fôlego para responder, fui um pouco indelicado e fiz uma interrupção: “Eu posso só pegar uma carona pequena nessa pergunta? Porque, além desse problema do narcotráfico existe uma outra diferenciação no Rio de Janeiro, que a criminalidade, principalmente o narcotráfico, constitui um poder político diferenciado, um poder político judiciário, porque o narcotráfico organiza julgamentos e execuções, e a imprensa registra inclusive julgamentos com absolvições, um poder político executivo, porque os traficantes, os comandantes nos pontos de tráfico, promovem ‘benfeitorias’ e acabam administrando, em termos executivos, aquela região, e um poder político também legislativo, uma vez que o narcotráfico impõe as regras de conduta dando origem ao que se chama de um direito alternativo. Então ali existe uma duplicidade de poder e existem regiões onde o único poder político é o poder da criminalidade. Então esse narcotráfico que o Armando falou que existe…”.
Nesse ponto, quem sofreu a interrupção fui eu. Minha pergunta estava se alongando em demasia, inquietando o entrevistado, que me atalhou: “Eu acho que você está indo muito longe, meu caro”. E riu.
Tentei retomar a palavra: “Pode ser que esteja, mas…” Nisso, o apresentador do programa, Jorge Escosteguy, também riu: “A carona era pequena que ele ia pegar”. Insisti: “Eu queria que o senhor comentasse essas diferenciações”.
O prefeito saiu pela tangente: “Eu devo te dizer que há realmente, e não há como ocultar, quer dizer, muita, muito registro quanto à incidência da traficância na nossa cidade, mas se vocês apelarem para as leis de mercado...”.
Armando Nogueira voltou à carga: “Prefeito, quando eu falo da geografia, é por causa do morro, deitado sobre a cidade, facilitando o acesso…”.
Alencar retomou seu discurso e, pode acreditar, sugeriu que a situação brasileira era comparável à do Canadá: “Armando, não existe uma causa, existem concausas disso, isso também não é geração espontânea. Quer dizer, de repente aparece a droga, e ela apareceu porque houve um relaxamento e o governo é frágil? Não. Isso daí é uma construção. A sociedade está enferma, mas não só aqui, no mundo inteiro a questão… Eu estive no Canadá e o prefeito da cidade, que se tornou até meu amigo, confidenciou os dramas que vive. Hoje, nos países de Primeiro Mundo, já se cogita de legalizar a venda de drogas, de fornecer inclusive a droga. Esse problema da droga não se esgota aqui nessa materialidade dos nossos morros, pelo traficante que tem uma hegemonia em determinado ponto. Não, isso é um fenômeno do nosso tempo. Aí estão as revelações que no mundo inteiro a droga… Eu acredito que as estatísticas registrem que o grande mercado das drogas sejam os Estados Unidos da América”. (Parece incrível, mas foi exatamente o que ele disse. Quem quiser conferir, eis o link: https://vimeo.com/17328928.)
Agora, passados quase 25 anos dessa entrevista, o presidente Michel Temer, no dia 11 de janeiro de 2017, falou sobre as chacinas sequenciais nos presídios brasileiros. Foi menos evasivo que Marcello Alencar e não tentou insinuar que o sistema penal brasileiro está em pé de igualdade com o canadense.
Com a palavra, o presidente da República: “Estas organizações criminosas, PCC, Família do Norte, etc., constituem-se quase, digamos, numa regra jurídica, numa regra de direito fora do Estado. Veja que eles têm até preceitos próprios. E, para surpresa nossa, até quando o fazem aquela pavorosa matança, o fazem baseado em códigos próprios. Está é uma questão que ultrapassa os limites da segurança para preocupar a Nação como um todo”.
As organizações criminosas que comandam presídios, subornando os dirigentes dessas instituições, já mataram 134 presos só nos primeiros 18 dias de 2017. O presidente tem razão em apontar uma “regra jurídica fora do Estado”. Nos vazios deixados pelo poder público nas prisões – assim como nos morros e nas comunidades carentes – ergueu-se um Estado paralelo, um regramento jurídico elaborado, aprovado e sancionado pelo crime. Milícias, tráfico, PCCs da vida (e da morte) e autoridades corrompidas compõem um organismo integrado que não apenas está “fora do Estado”, mas vai canibalizando o Estado.
A solução que Temer propõe é insuficiente: “Meu desejo é de que daqui a alguns anos não haja necessidade de anunciar a construção de presídios, mas só escolas e postos de saúde. Mas o Brasil ainda tem um longo caminho para este efeito. No momento, a realidade que nós vivemos exige, naturalmente, a construção de presídios”.
Aí você pergunta: mas os novos presídios não serão eles também governados pelo poder paralelo que mata detentos e compra servidores públicos na base de propinas e votos de cabresto? Quem sabe, daqui a mais 25 anos, outros 25 anos, uma resposta apareça.
*Jornalista, professor da ECA-USP
 *Eugênio Bucci
19 Janeiro 2017 | 03h04

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