Vânia Medeiros | ||
Em pouco mais de seis décadas de vida, passei do fogão a lenha da infância para este computador em que inauguro a coluna, o que faz de mim um brasileiro típico: um pé firme ainda no século 19, e outro inseguro no século 21, aparentemente sem ter vivido de fato o trepidante meio tempo do século 20, que, para quem veio depois das guerras, parecia só uma passagem do campo para a cidade.
Como as coisas vão acontecendo todas ao mesmo tempo, é difícil enxergar os detalhes do dia a dia.
Em algum momento a literatura tornou-se a medida da vida para mim, primeiro como leitor, depois como escritor. Como todo mundo, fui formatado (para usar esta palavra exata e violenta) na adolescência, o que no meu caso coincidiu com a formatação especial dos anos 1960.
Olhando o mundo pelo umbigo, parece que tudo que temos hoje já estava ali: os Beatles, a fúria da esquerda, a pílula anticoncepcional, a fúria da direita, o imperialismo ianque, o desmatamento da Amazônia, Fidel Castro, os gurus, o muro de Berlim, a maconha, os mísseis, o aparelho de TV, o bom selvagem, a viagem à Lua, a descoberta dos outros, o teatro experimental, a implosão da família.
Naquele miolo do tempo comecei a escrever -à mão, é claro, texto artesanal sobre papel, a escrita como um prolongamento físico da alma, de modo a não me deixar contaminar pelas máquinas que alienam a vida autêntica- eu acreditava piamente nisso. Aliás, eis um traço da minha geração, naquele momento: acreditar era um verbo intransitivo. Acreditava-se.
Nas décadas seguintes, enquanto o Brasil era arrastado para trás, continuei escrevendo à mão, ainda que com o olho espichado para o requinte da máquina de escrever, enquanto tentava comprar um telefone.
Em seguida, desiludido com as utopias tribais, pesquisei as possibilidades do tal do computador, via contrabando, enquanto nossos governos todos faziam o diabo para impedir que brasileiras e brasileiros fôssemos corrompidos pelo horror da informática e pelo controle mundial do Windows.
De repente, a revolução digital explodiu. A paquidérmica máquina movida a disquetes se transformou numa onipresença opressiva. A primeira coisa que vem à cabeça é o óbvio: goste-se ou não, trata-se de uma revolução inexorável e irreversível, embora com certeza surjam no futuro (talvez já existam) seitas neoanalógicas pregando a morte ao wi-fi, assim como já existe a dieta paleolítica —mas são só as clássicas exceções de referência.
Não é o meu caso: para compensar o atraso, tornei-me um viciado em traquitanas digitais, tomado de um sentimento literariamente otimista: o acesso universal e instantâneo à informação e aos livros que a internet permite representava a realização de uma pura utopia.
Além disso, a era da televisão, que dos anos 1970 aos 1990 civilizava um país iletrado apenas pela oralidade, agora cedia lugar à era da internet e jogava o Brasil inteiro no mundo da escrita. Num estalo, milhões de pessoas que jamais leram ou escreveram nada estavam lendo ou escrevendo alguma coisa em milhões de telinhas e teclados. Um potencial civilizatório gigantesco, o triunfo final da palavra escrita, um salto maravilhoso na educação do país, imaginava eu.
Mas, em pouco tempo, comecei a perceber que havia alguma coisa errada na minha equação mecânica: aparentemente, todos leem o tempo todo, mas nada além de manchetes, pedaços de frases e caixas de comentários.
O problema é que a internet não é apenas um meio, a máquina fantástica de uma gravura iluminista, ou o belo dragão chinês de alguma biblioteca universal, como sonhava este escritor do século 19. Ela até pode ser estes objetos hipnóticos —são suas iscas.
Mas não produz nada: é apenas (apenas?) um ambiente inescapável de sentidos e relações que vem desestruturando todos os aspectos consolidados da vida pré-internet com uma rapidez e uma simultaneidade assustadoras. Nesse sentido, somos cobaias mutantes de um momento brutal de transformação tecnológica.
Mas continuo otimista: passado este terremoto, os gremlins que hoje se estraçalham aos urros na quarta dimensão voltarão à terra firme para descobrir as delícias do silêncio visual, da mudez tranquila e da leitura prolongada.
Como as coisas vão acontecendo todas ao mesmo tempo, é difícil enxergar os detalhes do dia a dia.
Em algum momento a literatura tornou-se a medida da vida para mim, primeiro como leitor, depois como escritor. Como todo mundo, fui formatado (para usar esta palavra exata e violenta) na adolescência, o que no meu caso coincidiu com a formatação especial dos anos 1960.
Olhando o mundo pelo umbigo, parece que tudo que temos hoje já estava ali: os Beatles, a fúria da esquerda, a pílula anticoncepcional, a fúria da direita, o imperialismo ianque, o desmatamento da Amazônia, Fidel Castro, os gurus, o muro de Berlim, a maconha, os mísseis, o aparelho de TV, o bom selvagem, a viagem à Lua, a descoberta dos outros, o teatro experimental, a implosão da família.
Naquele miolo do tempo comecei a escrever -à mão, é claro, texto artesanal sobre papel, a escrita como um prolongamento físico da alma, de modo a não me deixar contaminar pelas máquinas que alienam a vida autêntica- eu acreditava piamente nisso. Aliás, eis um traço da minha geração, naquele momento: acreditar era um verbo intransitivo. Acreditava-se.
Nas décadas seguintes, enquanto o Brasil era arrastado para trás, continuei escrevendo à mão, ainda que com o olho espichado para o requinte da máquina de escrever, enquanto tentava comprar um telefone.
Em seguida, desiludido com as utopias tribais, pesquisei as possibilidades do tal do computador, via contrabando, enquanto nossos governos todos faziam o diabo para impedir que brasileiras e brasileiros fôssemos corrompidos pelo horror da informática e pelo controle mundial do Windows.
De repente, a revolução digital explodiu. A paquidérmica máquina movida a disquetes se transformou numa onipresença opressiva. A primeira coisa que vem à cabeça é o óbvio: goste-se ou não, trata-se de uma revolução inexorável e irreversível, embora com certeza surjam no futuro (talvez já existam) seitas neoanalógicas pregando a morte ao wi-fi, assim como já existe a dieta paleolítica —mas são só as clássicas exceções de referência.
Não é o meu caso: para compensar o atraso, tornei-me um viciado em traquitanas digitais, tomado de um sentimento literariamente otimista: o acesso universal e instantâneo à informação e aos livros que a internet permite representava a realização de uma pura utopia.
Além disso, a era da televisão, que dos anos 1970 aos 1990 civilizava um país iletrado apenas pela oralidade, agora cedia lugar à era da internet e jogava o Brasil inteiro no mundo da escrita. Num estalo, milhões de pessoas que jamais leram ou escreveram nada estavam lendo ou escrevendo alguma coisa em milhões de telinhas e teclados. Um potencial civilizatório gigantesco, o triunfo final da palavra escrita, um salto maravilhoso na educação do país, imaginava eu.
Mas, em pouco tempo, comecei a perceber que havia alguma coisa errada na minha equação mecânica: aparentemente, todos leem o tempo todo, mas nada além de manchetes, pedaços de frases e caixas de comentários.
O problema é que a internet não é apenas um meio, a máquina fantástica de uma gravura iluminista, ou o belo dragão chinês de alguma biblioteca universal, como sonhava este escritor do século 19. Ela até pode ser estes objetos hipnóticos —são suas iscas.
Mas não produz nada: é apenas (apenas?) um ambiente inescapável de sentidos e relações que vem desestruturando todos os aspectos consolidados da vida pré-internet com uma rapidez e uma simultaneidade assustadoras. Nesse sentido, somos cobaias mutantes de um momento brutal de transformação tecnológica.
Mas continuo otimista: passado este terremoto, os gremlins que hoje se estraçalham aos urros na quarta dimensão voltarão à terra firme para descobrir as delícias do silêncio visual, da mudez tranquila e da leitura prolongada.
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