Nova lei obriga instituições federais de ensino a rever procedimentos; estados terão que acelerar projetos de melhoria do ensino médioMarcelo Freitas*, Correio Brasiliense, 30 de março, 2013A segunda-feira, 4 de março, foi um dia especial na vida de Juliana Septimio Amaral e Arthur Cassa Macedo. Naquela data, eles participaram da solenidade de recepção aos calouros deste ano da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Juliana Amaral e Arthur Macedo passaram no vestibular de medicina, um dos mais disputados da UFMG. Os dois fazem parte do imenso contingente de aproximadamente 130 mil jovens brasileiros que ingressaram nas instituições federais de ensino pela nova regra da Lei das Cotas. Pelo texto da lei, que passou a vigorar para o vestibular deste ano, 12,5% das vagas existentes nestas instituições ficam reservadas para alunos que vieram de escolas públicas, pertencem a famílias com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo ou se autodeclararam como negros, pardos ou de origem indígena. Ano que vem, esse percentual vai dobrar, até atingir 50% em quatro anos.
Juliana e Arthur são, se é que se pode assim dizer, privilegiados, pois, além de terem usufruído da Lei das Cotas, poderão ser, ao mesmo tempo, personagens e expectadores daquilo que pode vir a ser a mais profunda mudança a ser implantada na estrutura das instituições federais de ensino desde a sua criação. O sistema começou a ser montado no início do século passado e hoje é composto por 59 universidades federais e 40 institutos federais de educação (Ifes) e centros federais de educação tecnológica (Cefets). Neles, a cada ano, entra 1,03 milhão de alunos, distribuídos por todas as unidades da federação. Sua marca registrada é a da excelência no ensino, principalmente, na pesquisa, setor no qual as faculdades particulares pouco atuam.
Porém, trata-se de um sistema que tem um vício de origem: o do elitismo. Historicamente, as salas de aula das instituições federais de ensino sempre foram ocupadas por alunos brancos, oriundos de escolas particulares e vindos de famílias cujo nível de renda tinha a classe média como limite inferior. Pobres e negros nunca tiveram vez nas instituições federais de ensino.
Essa realidade começou a mudar em meados da década passada, quando muitas instituições passaram a reservar cotas para este contingente excluído. Em agosto do ano passado, a presidente Dilma Rousseff, de uma só tacada, determinou que esse percentual cresceria 12,5 pontos percentuais a cada ano, até atingir 50% no vestibular que será realizado em janeiro de 2016.
Quatro anos é o prazo que as universidades, Ifes e Cefets terão para mudar conceitos, rever procedimentos e, do ponto de vista prático, criar mecanismos que garantam a esse novo contingente de alunos - que, pelo menos teoricamente, estariam mais fragilizados, tanto por sua condição financeira quanto por sua própria formação - o direito de estudar em igualdade de condições com o colega que está ao seu lado, é rico e fez os três anos do ensino médio em uma escola particular. Quatro anos é também o prazo que os estados terão para melhorar o ensino médio, de tal forma que, a partir de 2017, os alunos de escola pública não precisem mais do empurrãozinho da lei para garantir a vaga. O dever de casa vale para os dois lados.
Entre um contingente e outro há um abismo colossal. A começar pelo número de alunos. Em Minas, 86% dos jovens que fazem o médio estudam em escolas públicas; apenas 14% vêm de escolas particulares. Os números do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é usado pelas universidades como porta de entrada -pelo menos na primeira etapa de seus vestibulares -, dão a dimensão desse abismo. Em Minas, em 2011, das 100 escolas mais bem classificadas no Enem, 94 são particulares e apenas seis, públicas - todas federais. São colégios militares, escolas ligadas a universidades federais ou Cefets. Nenhuma é estadual. Na outra ponta, ou seja, das 100 escolas com pior desempenho, 99 são estaduais e uma é municipal.
A situação não é muito diferente em Brasília. Na capital federal, onde o número de escolas de ensino médio é muito menor do que em Minas, das 25 melhor classificadas, 24 são particulares e uma estadual. Na outra ponta, das 25 piores, todas são públicas - 24 são estaduais e uma federal. No Distrito Federal, cerca de 80% dos alunos de nível médio estudam em escolas públicas. Por isso, uma parte desse enorme dever de casa, que é o de democratizar o acesso às instituições federais de ensino, deve ser assumido pelos governos estaduais, que, constitucionalmente, são responsáveis pelo ensino médio.
O professor Mauro Luiz Rabelo, decano de Ensino de Graduação da Universidade de Brasília (UnB), considera a nova Lei das Cotas um avanço importante no sentido de corrigir uma distorção histórica na distribuição de vagas nas instituições federais de ensino. Ao mesmo tempo, ele chama a atenção para a necessidade de as universidades, Ifes e Cefets reforçarem suas políticas de acolhimento e acompanhamento dos calouros, especialmente no primeiro ano, com a criação de tutorias e espaços especiais de aprendizagem, nos quais os alunos que estão mais à frente nos cursos dariam esse apoio. Ele não acredita que as universidades vão perder a excelência. "Dá para fazer inclusão e excelência ao mesmo tempo", afirma Mauro Rabelo.
Essa é, também, a linha de pensamento do reitor da UFMG, Clélio Campolina, que prega a necessidade de reforçar a política de assistência aos alunos carentes, que, na UFMG, é dada pela Fundação Mendes Pimentel (Fump). Segundo ele, o próprio Ministério da Educação já sinalizou que pretende fazer isso. Campolina acredita que nos cursos de baixa demanda, como as licenciaturas, o contingente de alunos oriundos de escola pública será cada vez maior. Porém, para os cursos de grande procura, como as engenharias e o de medicina, ele não acredita que o critério do mérito deixará de ser o determinante, inclusive porque para o preenchimento das vagas reservadas aos alunos cotistas, também há disputa.
Os reitores de universidades federais ouvidos pelo Pensar & e Agir concordam com a Lei das Cotas. Porém, há questionamento em relação à função que, por ora, está sendo dada às universidades federais. "Elas estão ficando com uma responsabilidade maior do que seria o correto em relação à correção das históricas injustiças sociais brasileiras. Não dá para impor às universidades federais a solução para os problemas da educação superior brasileira", afirma João Luiz Martins, que, quando da sanção da Lei das Cotas, era reitor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Hoje, é o pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento da instituição.
Embora seja crítico em relação ao tamanho da responsabilidade que está sendo dada ao setor, João Martins faz questão de deixar claro que sempre foi a favor da política de cotas, medida que, na Ufop, foi instituída em 2008 e garantia a reserva de 30% das vagas para os alunos cotistas. Segundo ele, em Ouro Preto não houve grande diferença de desempenho entre os alunos cotistas e os não cotistas. Por isso, no seu entendimento, a medida será assimilada sem maiores transtornos pelas universidades.
Não é isso exatamente o que pensa o economista Cláudio Moura Castro, um estudioso da educação e assessor do sistema Positivo de ensino. Para ele, as universidades brasileiras não estão preparadas para receber um contingente tão grande de alunos oriundos da escola pública. Para os cursos menos disputados, não haverá, de acordo com ele, maiores diferenças em relação ao desempenho de um e de outro grupo. Porém, nos cursos de maior procura, será criada uma situação anômala, porque, a seu ver, os alunos cotistas fatalmente não conseguirão acompanhar o ritmo de aprendizado dos que vieram do ensino médio privado. Aí, segundo ele, haverá duas opções: ou a universidade baixa o nível de exigência para se adequar a esses alunos ou mantém o padrão. O resultado dessa opção, segundo Cláudio Moura Castro, é que esses alunos não conseguirão avançar no curso, ficarão desmotivados e acabarão desistindo. "A universidade federal brasileira não abre mão da qualidade. Não tem leveza intelectual para isso", observa.
Ainda que Cláudio Moura Castro e João Luiz Martins tenham posições radicalmente divergentes sobre a política de cotas, entre ambos há algo em comum. Os dois entendem que, no atual momento, uma atenção especial deve ser dada pelo poder público à melhoria do ensino médio. "O ensino médio é um problema", afirma João Martins. Ele aponta como pontos críticos o elevado percentual de evasão, da ordem de 50%, e a própria indefinição quanto ao conceito que deveria nortear seu conteúdo curricular.
O ideal, segundo ambos, é que o ensino médio conseguisse aliar a formação humanista ao conhecimento tecnológico e de mundo e, ao final dos três anos, o aluno pudesse fazer a escolha quanto a ir para a universidade ou fazer um curso técnico profissionalizante. "O importante é que a escola de nível médio esteja sintonizada com o século 21 e as novas tecnologias", afirma João Luiz Martins. "O momento é de consolidar o ensino médio", reforça Moura Castro.
Tanto em Minas quanto no Distrito Federal há projetos em andamento de reformulação do ensino médio. Em Minas, o projeto piloto - denominado Reinventando o ensino médio - começou em 2012, em 11 escolas, todas localizadas em Belo Horizonte. Este ano, o número de escolas participantes foi ampliado para 122, distribuídas por todo o estado; ano que vem, o projeto será estendido a todas as 2.188 unidades da rede estadual que oferecem o ensino médio.
A novidade é a introdução de disciplinas de caráter transversal, que não existem na grade normal do ensino médio. Em 2012, as 11 escolas de Belo Horizonte optaram pelas disciplinas de comunicação aplicada, turismo e tecnologia da informação. Este ano, estão sendo oferecidas outras cinco: empreendedorismo e gestão; meio ambiente e recursos naturais; estudos avançados em ciência; e estudos avançados em linguagens. Ao mesmo tempo, ocorreu o aumento da carga horária, de 2.500 horas/aula para 3.000 horas/aula ao longo dos três anos do ensino médio.
Além do projeto Reinventando o ensino médio, o governo do estado está investindo na atualização tecnológica das escolas e dos professores. Ainda no primeiro semestre deste ano, todos os professores receberão um tablet. Cada uma das 3.702 escolas estaduais, incluindo as de ensino fundamental, vai receber outro tablet e uma lousa digital. Com estes equipamentos, a secretaria espera aumentar a oferta de aulas interativas.
Em Brasília, o Governo do Distrito Federal também está reformulando o ensino médio, desde antes da entrada em vigor da nova Lei das Cotas. Um dos principais programas é o de reestruturação da grade curricular. No modelo novo, as turmas são divididas em dois blocos de disciplinas. Em um semestre, metade das turmas tem as aulas das disciplinas que compõem o bloco 1; a outra metade, as do bloco 2. No semestre seguinte, é feita a inversão das turmas. O resultado, segundo Gilmar Ribeiro, coordenador de Ensino Médio do Distrito Federal, é que os professores passam mais tempo com os alunos do que normalmente ocorreria. "Eles têm mais tempo para entender a aprendizagem e, com isso, podem ter uma ação mais imediata, evitando que os alunos cheguem ao final do processo com problemas", afirma Gilmar. Com a semestralidade, segundo ele, houve um aumento do número de alunos aprovados no vestibular da UnB, como foi o caso de Joadyson Silva Barbosa, 17, do Centro Educacional Pompílio Marques de Sousa, de Planaltina, primeiro colocado em medicina no vestibular deste ano. Além do projeto de reestruturação da grade, o Governo do Distrito Federal desenvolve programa para incentivar o debate de temas ligados à cultura, por meio da implantação de cineclubes nas escolas; e de incentivo à participação dos jovens na discussão de questões ligadas à vida da cidade.
A secretária de Educação de Minas, Ana Lúcia Gazzola, reconhece que o ensino médio carece de uma melhor definição conceitual. Mas ressalta que reformar o médio é muito mais complexo que fazer o mesmo no ensino fundamental. Entre as razões que contribuem para isso, Ana Lúcia Gazzola aponta o elevado nível de exigência que os adolescentes normalmente têm e o fato de ser a adolescência o momento em que as pessoas começam a se posicionar como sujeitos. "É uma época de muito conflito com a autoridade", afirma a secretária.
Ela afirma que o ensino médio, não só no Brasil mas também em vários países, é desconectado da realidade. "Ele nem prepara claramente para a universidade, nem prepara claramente para o mundo do trabalho, nem prepara claramente para uma visão empreendedora da vida", afirma a secretária, que também critica a própria metodologia adotada no ensino médio, a seu ver conservadora, "sem temas transversais, sem uma abordagem interessante dos problemas da atualidade e sem foco na temática mais contemporânea".
No Brasil, há dois modelos de ensino médio: um é o tradicional, cujo objetivo é preparar os alunos para o vestibular; o outro é o que combina o modelo tradicional com o técnico. Neste, o aluno termina o ensino médio com uma profissão e, pelo menos teoricamente, estaria preparado para o vestibular. De acordo com Ana Lúcia Gazzola, a proposta do Reinventando o ensino médio é a de ser uma terceira alternativa entre um modelo e outro, já que o aluno, ao chegar ao terceiro ano, na rede estadual, não recebe o diploma de curso profissionalizante, mas sai mais bem preparado para decidir que caminho pretende seguir - se o de buscar um curso profissionalizante ou fazer o vestibular. Ana Lúcia Gazzola é a favor da Lei das Cotas, instrumento que, a seu ver, permite que todos os jovens tenham igualdade de condições no momento da largada em busca de uma profissão de nível superior. Gilmar Ribeiro, coordenador de Ensino Médio do Distrito Federal, também é a favor da lei, que, com a ampliação dos percentuais de entrada, coloca a escola pública em um novo patamar de responsabilidade social.
Não são só os estados que estão procurando novos rumos para a educação. Entre as universidades federais, também há projetos inovadores. No Rio Grande do Sul, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) mantém, desde meados dos anos 1990, uma parceria com escolas de ensino médio de Santa Maria e de inúmeros outros municípios do estado. Trata-se do projeto Integrar para qualificar. As escolas que firmam a parceria usufruem de uma série de atividades oferecidas pela universidade aos alunos do ensino médio: palestras, oficinas, minicursos, ações de qualificação e feiras de ciência, arte e tecnologia. Os alunos podem fazer a seleção seriada, com uma prova a cada ano do ensino médio, ou o processo único, de provas em etapa única.
Lá, diferentemente do que ocorre na maior parte do país, os alunos oriundos de escola pública são maioria. No processo seriado, 66,9% dos alunos vieram da rede pública e 33,1% de escolas privadas. No processo único, a presença dos alunos de escola pública é até maior: 75,1%, ficando os que vieram de escolas particulares com 24,9% do total de vagas. Para Thais Dorow, coordenadora do programa de integração com as escolas, há ganhos para os dois lados: os alunos podem fugir do estresse de um vestibular, na medida em que fazem a prova a cada ano, caso optem por esta modalidade de seleção. Para a UFSM, a parceria possibilita a racionalização do processo seletivo, de um lado, e a melhoria da qualificação dos alunos que entram na universidade, de outro.
Da Universidade Federal do ABC (UFABC) em Santo André, São Paulo, vem outra novidade: o bacharelado interdisciplinar. Lá, os alunos têm duas alternativas de entrada: ou fazem o bacharelado de ciência e tecnologia ou o bacharelado de ciência e humanidades. Somente depois de completar esta etapa, que dura três anos, é que eles escolhem o curso que vão fazer. A partir daí, a opção segue o modelo tradicional.
Para o vice-reitor da UFABC, Gustavo Martini Dalpian, a entrada na universidade pelo bacharelado interdisciplinar é um bom caminho porque retira do aluno a obrigação de escolher precocemente uma profissão. Para o mercado de trabalho, o ganho é a formação de um profissional com uma visão de mundo mais abrangente que a dos que se formam pelo modelo tradicional. "Os grandes desafios do mundo atual requerem soluções que são interdisciplinares", diz Gustavo Dalpian, para quem as universidades federais precisam se renovar a cada dia, adaptando-se aos novos tempos e aproximando-se mais da realidade.
Nesse sentido, ele considera a nova Lei das Cotas um avanço na consolidação do tripé sobre o qual se assenta a UFABC: excelência acadêmica, interdisciplinariedade e inclusão social. Gustavo Dalpian rebate a afirmação de que os alunos cotistas têm um desempenho muito inferior ao dos não cotistas. Na Universidade Federal do ABC, o coeficiente médio dos alunos é de 2,05. Os não cotistas têm um coeficiente maior, de 2,07. Já o coeficiente dos cotistas é menor que o da média: 2,03. "A diferença é mínima", afirma Gustavo Dalpian. Para ele, os números mostram que não há conflito entre cotas e excelência acadêmica.
Juliana e Arthur, dois dos calouros do curso de medicina da UFMG, parecem não se importar com essa polêmica. Ambos vieram da escola pública e estão otimistas em relação à formação que receberão da universidade. "A UFMG é referência no ensino de medicina e espero que isso me dê respaldo na profissão e me garanta um bom emprego", afirma Arthur.
Tanto ele quanto Juliana reconhecem que as cotas são importantes para corrigir a distorção que há, hoje, nas condições de acesso à universidade pública. "Nós, que viemos da escola pública, não podemos pagar o preço de não ingressar na universidade", afirma Juliana. Porém, para ambos, mais importante do que fazer essa correção de rumo, é buscar a causa do problema, investindo na real melhoria do ensino público. Se isso for feito, talvez seja até possível pensar em um cenário no qual as cotas deixariam de existir na vida real e passariam a fazer parte de um outro mundo, o do passado - aquele que é ensinado nas aulas de história.
* Com reportagem de Cássia Miranda