DANILO CYMROT
Prossegue a política de naturalizar a associação da violência com o funk, como se um estilo musical fosse causa de morte
O tiro que matou MC Daleste foi o tiro que silenciou a voz incômoda que denunciava a dura realidade vivida por milhares de jovens nas periferias das grandes cidades brasileiras. Paradoxalmente, foi o tiro que deu visibilidade máxima a um jovem que, como outros, estava em busca de reconhecimento social.Nada mais emblemático que o tiro tenha sido dado quando MC Daleste estava em cima do palco e que a gravação da cena tenha sido vista por milhões de pessoas que só conheceram o grande ídolo da periferia após a sua morte.
Para grande parte da sociedade, jovens da periferia só obtêm visibilidade quando associados a episódios violentos, realçando-se mais sua condição de autores do que a de vítimas. A demanda por visibilidade é ainda mais trágica diante do pedido do MC para que sua foto baleado fosse colocada no Instagram.
Em uma sociedade que tem a ascensão social e o consumo como principais metas culturais, o funk proibidão, acusado de fazer apologia ao crime, e o funk ostentação, que faz apologia ao consumo, são mais complementares do que antagônicos. Ambos expressam a recusa de uma posição subalterna por pobres assalariados.
O primeiro, por meio da associação com o tráfico. O segundo, pela associação simbólica com bens de consumo de luxo. No entanto, o funk ostentação é mal visto em uma sociedade na qual o consumo de marcas distingue cidadãos. Classes altas não gostam de ver seus espaços exclusivos invadidos e marcas luxuosas não querem ser associadas a "funkeiros favelados".
Embora fosse um dos principais representantes do funk ostentação e ganhasse com seus shows dinheiro suficiente para viver em um bairro nobre, MC Daleste, que não teve banheiro em casa até os 13 anos, não deixou sua comunidade. Cantava para ela e dela vinha seu sustento.
Ainda que cantasse, no clipe póstumo "São Paulo", uma vida em mansões e vestisse correntes de ouro, morreu ostensivamente em frente a um conjunto habitacional popular, engrossando uma cifra ostensiva. Sua morte foi espetacular, mas assustadoramente comum.
Em junho de 2012, escrevi neste espaço um artigo sobre a criminalização do funk e o extermínio de MCs. Até então, cinco ídolos do funk da Baixada Santista haviam sido assassinados. Prossegue a política de naturalizar a associação da violência com o funk, como se um estilo musical fosse causa de morte.
Para setores conservadores, a crítica de jovens da periferia à atuação da polícia, se não legitima os assassinatos, pelo menos legitima a negação de seu direito à segurança.
O primeiro tiro, que atingiu MC Daleste de raspão, foi certeiro em explicitar a banalização da violência em certos territórios da cidade, nos quais as balas não são de borracha. O MC permaneceu cantando. Houve no público quem acreditasse se tratar de um tiro disparado para o alto ou de um efeito musical característico de proibidões, a trilha sonora de um filme em que ficção e realidade se misturam. Dessa vez, não se tratava nem de um jogo de computador nem de uma glamourosa minissérie televisiva.
Como qualquer artista, MC Daleste era alvo das projeções de milhares de jovens que sonham com ostentação, mas acabou sendo mais um alvo dos projéteis que traçam a realidade cantada em proibidões.
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