26 de fevereiro de 2016

Os governos são aliados do mosquito? (Artigo)

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR

Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria e representante da SBP no Global Pediatric Education Consortium (GPEC)  E-mail: dicamposjr@gmail.com
Contra fatos não há argumentos. As provas do atraso reinante na sociedade brasileira são fáticas, saltam aos olhos de forma contundente. Repetem-se à exaustão. Multiplicam-se exponencialmente a cada dia, desafiando os falaciosos discursos. Perpetuam cenários deprimentes. Falam alto, mas não são ouvidas. Revelam a tristeza da realidade nacional, porém são ignoradas.

Assim caminha o Brasil, sem eira nem beira. Onde chegará, só Deus sabe. O que nos espera mais adiante não se configura nada animador, será dificilmente reversível se mantida a cultura do atraso em que o país mergulhou. A tradição do faz de conta permanece intocável, perpetuando o orgulho do jeitinho brasileiro, qual seja, a capacidade das pessoas de conviver natural e passivamente com os horrores do cotidiano, revelando ilimitada tendência para digerir os agravantes sociais de que se alimenta no dia a dia.

As aparências já enganaram melhor em outros tempos. Hoje, a realidade está despertando as pessoas do sono profundo em que viviam, iludidas pelo paraíso da fantasia. Vários exemplos, de distintas eras, comprovam a falta de elã evolutivo em que o país vem sendo mantido. Brilhantes ideias e projetos transformadores sempre existiram, mas, lamentavelmente, na sua maioria, terminam sepultados na gaveta do descompromisso com a verdadeira formação da cidadania.

Não por outra razão, o mosquito Aedes aegypti é o personagem de maior destaque na atualidade. De longa data, é um dos bem conhecidos habitantes do meio ambiente precário, sujo, contaminado, cheio de esgoto a céu aberto e detritos que poluem o vergonhoso domicílio em que sobrevive, a duras penas, a maioria da população. Já adoeceu e matou expressivos contingentes de brasileiros, transmitindo-lhes livremente a dengue e a chicungybga. Segue contagiando muita gente país afora, sem qualquer reação do povo e das autoridades que o representam. Um dos flagrantes resultados desta grave displicência é o surgimento do vírus zika, transmitido pelo mesmo mosquito. O impacto provocado pelo novo agente viral é chocante porque, ao que parece, causa lesões fetais que geram a tragédia da microcefalia. Os recém-nascidos vítimas dessa dantesca doença já chegam ao mundo numa irreparável situação de inferioridade. Trata-se de mais uma evidência dos graves desastres sociais e humanos que se tornam rotina nas entranhas da sociedade brasileira.

Com efeito, nosso sistema de saúde trabalha preponderantemente com o diagnóstico e tratamento das enfermidades. Quase nada faz no campo da prevenção cujo custo é menor e cuja eficácia é inquestionavelmente superior. O Brasil precisa inverter a lógica de tão precário sistema. A prioridade do país deve ser a redução de doentes e não o aumento do número de profissionais para deles cuidar.

No momento em que enfrentamos mais um susto de surto epidêmico, vale a pena refrescar a nossa memória em respeito à verdade histórica dos fatos. Em 1996, o eminente médico doutor Adib Jatene, à época ninistro da Saúde, envolveu-se de corpo e alma na tentativa de realmente mudar a dolorosa pobreza sanitária que, se não desfeita, eliminará a ordem e o progresso da bandeira nacional. Como disse Gunnar Myrdal: "Os povos são pobres e doentes porque produzem pouco, e produzem pouco porque são pobres e doentes para produzirem mais".

Na gestão do doutor Jatene, a equipe de profissionais que ele liderava elaborou projeto destinado à erradicação do mosquito Aedes aegypti em todo o território nacional. Era um plano abrangente em conceitos científicos e iniciativas a serem adotadas em curto, médio e longo prazos. Incluía o combate químico por meio de inseticidas, obras de saneamento e contínua educação da sociedade, com ênfase no impactante papel que lhe cabe para alcançar a indeclinável meta preventiva. O ilustre ministro enfatizou a prioridade da viabilização de tal projeto como única alternativa para se controlar a expansão das doenças propagadas pelo nocivo inseto. Infelizmente, nada aconteceu. Tamanha insensibilidade governamental frustrou a expectativa daquela respeitada liderança médica, que preferiu deixar o Ministério da Saúde.

Os governos agiram assim como se fossem aliados do mosquito, optando pela prioridade das ações curativas. Não demora, vão contratar e responsabilizar mais médicos para cuidar de mais microcéfalos. É um investimento ilusório, feito para impressionar e enganar as populações. Sem educação de berço, a sociedade não tem futuro. Ou o país acorda e abandona o mundo da lua, ou a decadência continua.

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