16 de fevereiro de 2016

Saneamento mental (Artigo) CRISTOVAM BUARQUE


Professor da UnB e senador pelo -DF


Às vezes, a maior surpresa diante de um fato é a própria surpresa que ele provoca: como se todas as condições não estivessem dadas para sua ocorrência. Um exemplo é a surpresa com que o Brasil e o governo recebem a epidemia da dengue. Por décadas, desprezamos o saneamento e agora nos surpreendemos com a superpopulação do Aedes aegypti e suas consequências. A dengue é o resultado óbvio da desatenção com os aspectos sociais, especialmente saneamento e educação.

Ao longo de nossa história, os governos desprezaram investimentos no saneamento das casas da população. Há 13 anos temos um governo que se elegeu com a bandeira do social: prometendo reorientar as propriedades no uso dos recursos nacionais para atender às camadas mais pobres do povo e beneficiar a qualidade de vida da sociedade. A grande surpresa não está no tamanho da epidemia, mas no fato de que ela ocorre depois desse tempo e que estamos atravessando uma das mais dramáticas crises sociais pela dimensão da epidemia provocada pela falta de saneamento, inclusive com o horror da microcefalia.

O governo dos 13 anos, parte considerável de um século, se orgulha de ter elevado o nível de consumo de bens industriais das parcelas pobres da sociedade, ignorando que apenas 63% das residências têm acesso ao saneamento. Praticamente todos que ascenderam no consumo continuam sem saneamento. E agora, endividados. Ao se vangloriar de aumentar o consumo sem oferecer água, esgoto, escola, saúde, segurança, cultura, o governo dos últimos anos se comporta como quem abre a porta de casa, mas não acolhe nem abraça a visita.

A falta de saneamento nas casas é o resultado da falta de saneamento mental das forças que dirigem o país. Elas mantêm a mentalidade de décadas: prioridade ao aumento da produção, sem preocupação com o tipo de economia com o meio ambiente, a distribuição da renda, sobretudo sem prioridade direta aos investimentos sociais.

Neste ano, muito oportunamente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) adotou o tema saneamento para a campanha da fraternidade. O sofrimento de 1,6 milhão de pessoas contaminadas e 1.000 mortas por causa da dengue, ainda mais a tragédia assustadora da microcefalia fazem perfeita a ligação entre fraternidade e saneamento. Sanear as casas é questão de compaixão que requer fraternidade, mas também o entendimento correto do conceito de saneamento em toda a extensão.

O Brasil precisa sanear a maneira de fazer política: sem corrupção no comportamento dos políticos, tampouco corrupção nas prioridades dos orçamentos públicos. Sem esse saneamento, o outro não será atendido; precisa sanear as contas públicas, sem o que a inflação corrói tanto a vida social como uma espécie de dengue social.

Precisamos sanear nossa democracia dependente de partidos sem identidade ideológica, nem ética entre os militantes, com campanhas milionárias em que os votos são comprados muitas vezes com dinheiro originado em propinas usadas para enganar o eleitor pelo marketing.

A saúde precisa ser saneada não apenas pelo tratamento das águas e resíduos, mas também pela concepção do sistema de saúde em toda sua integralidade, assim como no compromisso com o público e não com os políticos, os empresários e os servidores.

A educação precisa ser saneada, eliminando-se a necessidade de paralisações, que sacrificam o aprendizado por parte de nossas crianças, assegurando salários compensadores e exigindo dedicação plena, com avaliações periódicas dos professores e demais servidores, em prédios confortáveis, bem equipados, em horário integral.

As ruas de nossas cidades precisam ser saneadas não apenas no tratamento das águas e resíduos, mas também na pacificação delas, na liberação do trânsito que assassina dezenas de milhares por ano e rouba todos os dias tempo de vida dos milhões de passageiros que tentam ir de um lugar para outro.

A fraternidade exige saneamento na consciência economicista e nos hábitos egoístas de cada brasileiro e seus governos e a percepção da necessidade de solidariedade entre todos nós, contemporâneos, e entre nós e as futuras gerações. Exige saneamento mental no individualismo imediatista voltado para o consumo e a próxima eleiçã

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