Qualquer gozação ou agressão sofrida por uma criança na escola pode ser considerada bullying?
Para a assistente social e autora americana Signe Whitson, especializada em bullying e gerenciamento de conflitos entre crianças e adolescentes, é preciso aprender a diferenciar entre os comportamentos praticados dentro da escola justamente para não banalizá-los - e para saber como interferir em cada situação.
"Se tudo vira bullying, perde importância - e é o que vejo hoje nas escolas", opina Whitson em entrevista à BBC Brasil.
"A palavra bullying está sendo usada com tanta frequência que as pessoas pararam de prestar atenção. Os professores dizem, 'estou cansado de ouvir isso'. O problema é que há crianças que estão sob risco real e nós não estamos prestando atenção, porque nos cansamos do assunto."
O tema voltou ao debate no Brasil em outubro, quando um adolescente goiano disparou contra colegas dentro da escola, matando dois e ferindo outros quatro, incluindo uma jovem que ficou paraplégica. Ainda investiga-se se ele foi alvo de bullying antes dos atos.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), cerca de 195 mil estudantes do 9º ano do ensino fundamental disseram, em 2015, terem sofrido bullying por parte dos colegas.
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"Se tratarmos tudo como 'criança é assim mesmo', as deixaremos muito vulneráveis a dores profundas. Sabe-se que o bullying tem sérias consequências de longo prazo. As vítimas têm tendência maior à depressão e ansiedade; os perpetradores têm tendência maior de vício em álcool ou drogas ou de comportamento criminoso", explica Whitson.
"Ou seja, todos os envolvidos necessitam de ajuda adulta, e estamos negando essa ajuda quando minimizamos o fato."
'Maldades e grosserias' x bullying
A especialista diferencia, porém, o bullying do que chama de "grosserias" ou "maldades" entre os alunos - práticas que, embora devam ser enfrentadas, têm menor gravidade.
Nessa categoria ela inclui gozações ou desavenças que não cumpram com as três principais características que ela vê no bullying:
1 - O desequilíbrio de poder: é bullying quando um grupo pega no pé de ou exclui uma única criança, ou quando uma criança maior e mais forte alveja uma menor.
2 - A repetição: o bullying costuma ocorrer repetidamente, e não como uma ação isolada.
3 - A intencionalidade: o bullying é uma agressão proposital, feita com o objetivo de humilhar.
Esse espectro inclui agressões físicas e verbais, mas também relacionais - por exemplo, excluir ou isolar alguém socialmente, seja no ambiente escolar ou nas redes sociais. Todas essas ações costumam ter impactos profundos e duradouros tanto nas vítimas como nos praticantes.
Fazer essa distinção não significa minimizar comportamentos agressivos de menor potencial: a crítica de um aluno à aparência do outro, por exemplo, ainda que não tenha caráter repetitivo ou o objetivo de humilhar, pode ser ofensiva. O mesmo pode ser dito de uma agressão física.
Além disso, alguns comportamentos de menor gravidade podem, com o tempo, escalonar para o bullying caso não sejam interrompidos.
A diferença, diz Whitson, é que é possível ensinar as próprias crianças a lidar com essas situações menos graves.
"A essência é ensinar as crianças a controlar suas reações. Por exemplo, se estão tirando sarro de você, e você tem uma grande reação emocional - fica com muita raiva, chora -, o perpetrador vai pensar: 'hum, posso controlar você'. E o comportamento se repetirá", explica ela.
"Também ensino as crianças a usar suas vozes: seja assertivo, mas também calmo e respeitoso independentemente de o que digam para você. Faça contato visual (com o agressor) e, em um tom de voz normal, demonstre ser forte, em vez de vulnerável e facilmente intimidado."
Bullying requer intervenção adulta
Casos de bullying, porém, extrapolam a capacidade das crianças e adolescentes de enfrentarem a situação por conta própria. Se há desequilíbrio de poder, intencionalidade e repetição nos atos com a intenção de humilhar, é preciso que adultos reconheçam a gravidade das agressões e intervenham - com cuidado para não agravar o problema.
"No caso de professores, é crucial lidar com o assunto imediatamente, para interromper o comportamento agressor, mas sem sermões longos, que vão apenas envergonhar a vítima, deixá-la mais vulnerável e incentivar o agressor a repetir o comportamento mais tarde", opina Whitson.
Ela sugere algumas frases com que professores podem interromper humilhações em sala de aula: "Não é aceitável dizer isso para ninguém na minha sala. Ficou claro?" ou "Deixar um colega sem grupo não é aceitável. Vamos resolver isso e seguir em frente."
No longo prazo, diz ela, é preciso interromper ciclos de violência dentro da escola - um problema para o qual não há soluções simples ou rápidas. E, nesse processo, é crucial não desistir das "crianças-problema", diz a autora americana.
"É preciso estabelecer conexões fortes com os praticantes de bullying, e em geral ocorre o oposto. Os adultos dizem 'esse menino é problemático, é terrível, não tem jeito'. Isso acaba afastando a criança ainda mais", explica Whitson.
"Trata-se de uma criança que está machucando outras pessoas propositadamente, então temos que fazer alguma conexão com ela. Será que os adultos estão conversando com essa criança, para entender o que está acontecendo com ela, como ela está se sentindo, se entende como suas ações estão afetando os demais? Ou será que os adultos estão partindo diretamente para a punição?"
"Quando os adultos conversam de verdade com as crianças e as fazem entender o impacto de suas ações, conseguem mudanças, empatia. Ao mesmo tempo, é preciso dar reconhecimento a quem pratica a gentileza. Os jovens que param o que estão fazendo para ajudar um colega com a lição de casa ou que se sentam ao lado de um colega que está sozinho merecem tanto reconhecimento quanto ao que costumamos dar aqui nos EUA aos alunos que se destacam nos esportes, por exemplo."
O papel dos pais
Segundo Whitson, ainda é comum que pais de vítimas de bullying ou de agressões cotidianas pratiquem dois tipos de comportamento que ela considera contraproducentes.
O primeiro é minimizar as agressões ou deixar as crianças lidarem com elas por conta própria; o segundo é exagerar na reação a qualquer briga dos filhos, já exigindo uma reparação por parte da escola ou da criança agressora e talvez expondo o próprio filho ainda mais.
"Nenhum desses comportamentos ajuda o seu filho", opina Whitson.
"Acho que o papel dos pais é dar muito apoio e ser um bom ouvinte: escutar o filho, acreditar nele, abraçar, dar conforto e daí ajudar na resolução de problemas. 'Ok, vamos pensar juntos: como vamos lidar com isso? O que você pode dizer ou fazer em determinada situação? O que você vai responder se seu colega disser tal coisa? Com quem você pode sentar para não se sentir vulnerável?'".
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