"Ela achava que eu não teria capacidade", afirma.
Aos 28 anos, Monique coleciona uma lista de obstáculos que teve de superar até conseguir chegar ao diploma –o que faz com que ela relate os dois episódios com uma certa tranquilidade.
"Um dia percebi que tinha que ser isso: militante, médica, negra, da favela e que não ia desistir", diz, relembrando a fase em que chegou a trancar o curso por um ano por não se identificar com quem a rodeava na faculdade.
Nascida em Niterói e criada na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, Monique se formou em medicina pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) no ano passado. Ela entrou por cotas em 2010 –a Uerj foi umas da pioneiras na adoção do sistema no país, em 2002, muito antes da Lei de Cotas das federais ser sancionada em 2012.
As desigualdades também estão na escola. Ser preto no Brasil aumenta a probabilidade de fracasso escolar entre 7 e 19 pontos percentuais mesmo considerando alunos com pais que têm o mesmo perfil de escolaridade, o ensino fundamental completo.
Neste estudo de 2012, da pesquisadora Paula Louzano, o fracasso escolar foi medido pela repetência e evasão de alunos do 5º ano.
A mãe de Monique França é cabeleira, negra, foi empregada doméstica por quase toda a vida e aprendeu a ler aos 25 anos. Ao lado do pai, motorista, sempre colocou o valor da educação acima das dificuldades, diz a filha.
Na 8ª série, por iniciativa da mãe, Monique conseguiu uma bolsa em uma escola particular. Mesmo ficando em uma turma entre os 30 melhores da escola, não conseguiu passar de primeira e partiu para o cursinho. Foi a secretária do cursinho que falou pra ela sobre cotas.
"Quando entrei na universidade entendi que estava tendo oportunidade que ninguém na minha família teve. Sou a primeira. E o medo de decepcionar, por causa de uma nota, faz uma pressão enorme", diz. "Pra mim não era só mais uma etapa educacional, mas a oportunidade de mudar de vida."
Levava duas horas no ônibus entre a faculdade e a casa. Na primeira prova, tirou 3,8. Teve dificuldade de entender o modo de avaliação. Mas um 9,8 veio já no segundo teste. "Talvez a representatividade de ser uma mulher negra e médica fez com o que eu terminasse o curso."
Hoje Monique faz residência em Medicina de Família e Comunidade em uma clínica municipal do Rio, depois de ter feito um curso em Cuba. Com a melhora na renda, mudou-se para um local próximo ao trabalho e está reformando a casa da família.
"Eu entendo quando um paciente diz que não dormiu porque passou a noite inteira com um tiroteio na porta, porque eu passei por isso", diz. "E é isso que a gente tem de aprender a fazer como médica: interpretar uma dor."
Foi também na Uerj (que passa por grave crise financeira atualmente) que Irapuã Santana, 30, ingressou no ensino superior. Ele é da segunda turma de cotas da universidade, em 2004.
Havia estudado também com bolsa em escola particular. A universidade foi, como no caso de Monique, uma novidade na família: o pai, maquinista, fez até o ensino médio. A mãe, do lar, só pôde estudar até a 4ª série.
"O primeiro ano foi bem complicado, reprovei em duas matérias. Mas depois acabei passando e comecei a me destacar", conta ele, que durante cinco anos acordava às 4h30 para conseguir cumprir a tempo o trajeto de Maricá, município da região metropolitana do Rio, onde morava, até o campus, no Maracanã, na zona norte da capital.
Depois de formado, Santana foi o primeiro advogado negro de um grande escritório no Rio, engatou um mestrado, passou em concurso para procurador, escreveu seu primeiro livro e fez um curso na universidade Yale (EUA). Hoje é professor universitário, está para concluir o doutorado e atua como assessor do ministro Luiz Fux, no STF (Supremo Tribunal Federal), em Brasília.
As condições de vida melhoraram, e Santana sabe o lado positivo de servir de inspiração. Mas os reflexos do racismo, diz ele, não seguiram a mesma tendência.
"As pessoas acham que sou motorista e segurança, é muito rotineiro. As pessoas acham que o racismo vai diminuindo, mas é o contrario. Ser o único negro é ter que provar todo dia por que estou aqui no supremo", diz.
O professor Luis Augusto Campos, do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), explica, comparando pessoas da mesma classe social, os pretos e pardos ainda têm maior dificuldades de ascensão social.
O grupo tem acompanhado o desempenho de cotistas e não cotistas nas notas das disciplinas dos cursos. Em avaliação recente na Uerj, a diferença no desenvolvimento acadêmico dos dois grupos não chega a 0,5 ponto.
"Os dados têm mostrado uma condição ótima entre mérito e inclusão. Nos cursos mais concorridos, inclui os cotistas com melhor desempenho", diz Campos, que ainda sente falta de uma avaliação institucional da política.
ENADE
Os dados do Enade analisados pela Folha que, em 37 de 64 cursos, as notas dos cotistas raciais tem uma média inferior a 5% do que a dos não cotistas. Nos outros 27, as médias dos cotistas raciais são similares (até 5% menor) ou superior.
O Enade permite identificar uma realidade ampla, mas tem limitações. Não há garantia de empenho dos estudantes na prova, uma vez que a nota não conta para o estudante –a reportagem excluiu dados de quem deixou a prova em branco.
Outra questão é de amostra. Estudantes que fizeram a avaliação entre 2014 a 2016 ingressaram quando não havia lei de cotas nas federais ou os percentuais de inclusão eram ainda tímidos. Sobretudo com relação a cotistas raciais, uma baixa quantidade de beneficiados fragiliza uma análise mais conclusiva sobre esse grupo.
Em 2003, as federais tinham 34,2% de alunos pretos e pardos. Em 2014, esse índice subiu para 47,6% (em uma população de 53%). Os dados são da Andifes (associação dos reitores das instituições federais). Os dados escondem a baixa inclusão em cursos concorridos.
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