10 de dezembro de 2017

Cotista tem nota boa na universidade, mas recua em cursos com matemática

Uma das principais perguntas no debate sobre cotas em universidades públicas é se alunos beneficiados conseguem acompanhar a faculdade. Os dados mostram que aqueles que entram por esse caminho se formam com desempenho próximo aos demais alunos em pouco mais da metade dos cursos.
A nota deles é inferior, porém, especialmente nas exatas. Dos dez cursos em que os cotistas estão mais atrás dos demais, sete são dessa área.
Folha analisou o desempenho de 252 mil estudantes nas últimas três edições do Enade, de 2014 a 2016. O exame é aplicado pelo Ministério da Educação a alunos no último ano da graduação e contém perguntas de conhecimentos gerais e específicos.
Em 33 dos 64 cursos, a nota média dos estudantes beneficiados por cotas ou outra ação afirmativa foi superior ou até 5% inferior -desempenho considerado semelhante, pois representa diferença de até dois pontos em cem possíveis em uma prova.
Estão nesse grupo odontologia (3% superior), ciências sociais (exatamente igual) ou medicina (2% inferior).
caminho durante o ensino superior se mostra ainda mais positivo para esses estudantes beneficiados se considerado que eles começam o curso com desempenho inferior aos demais alunos.
Em odontologia, a nota de entrada dos estudantes beneficiados por cotas é 6% menor, segundo projeção feita com base no sistema de ingresso nas universidades federais em 2015. Em ciências sociais e medicina, por exemplo, é de 4% abaixo.
Ou seja, sem a reserva de vagas, esses estudantes provavelmente não estariam na universidade pública, pois teriam sido ultrapassados no processo seletivo por alunos de colégios particulares.
OPORTUNIDADE
A política de cotas tem como objetivo aumentar a presença em universidades públicas de populações que são representativas na sociedade, mas têm tido acesso limitado ao ensino superior -como alunos de escolas públicas, negros ou indígenas.
"Uma vez que esse aluno desfavorecido entra numa universidade pública, ele vai fazer de tudo para aproveitar a oportunidade", afirma o ex-ministro da Educação (gestão Dilma) Luiz Cláudio Costa.
Ele diz que, se o cotista ficar com nota até 10% menor que a de um não cotista no Enade, significa que eles estão praticamente empatados (a reportagem utilizou 5% como critério). Pelo modelo do ex-ministro, os alunos que utilizaram cotas estariam empatados ou acima dos demais em 54 dos 64 cursos.
Em qualquer um dos critérios, fica nítido que, nas exatas, há maiores dificuldades para os estudantes beneficiados por ação afirmativa.
Entre os 31 cursos que os alunos de ação afirmativa tiveram média ao menos 5% inferior, 13 são de exatas.
Nos cursos em que eles tiveram desempenho melhor, nenhum é de exatas.
A defasagem em matemática dos alunos das escolas públicas é evidente desde o ensino básico. Apenas 4% desses alunos se formam com desempenho adequado, ante 22% em português.
"Especialmente os primeiros três semestres são puxados para qualquer aluno, porque exige muita matemática", diz o presidente da Associação Brasileira de Educação em Engenharia, Vanderli Fava de Oliveira. "Para o cotista é ainda pior, porque ele chega com mais defasagem."
Professor de engenharia da Universidade de Juiz de Fora (MG), Oliveira diz que, nos primeiros semestres nas engenharias, a evasão bate os 50%, para cotistas e não cotistas.
Ele defende que as universidades devam ter programas de acolhimento, em que as dificuldades sejam atenuadas com aulas de reforço, e que haja também apoio social.
A medida poderia ajudar alunos como Luan Lima, 21. Ele ingressou em 2015 em engenharia na Universidade Federal de São Carlos (SP) por meio de cotas para rede pública. De cara, reprovou em duas disciplinas de cálculo e em outra de programação.
"Muitas das bases da matemática para desenvolver os cálculos eu não tinha visto na escola", conta ele, cuja mãe é empregada doméstica.
Sem conseguir bolsas de permanência estudantil, teve de voltar para São Paulo.
Ingressou em engenharia da informação na Federal do ABC. Hoje no 2º ano, Lima tem se sentido mais à vontade com o curso. "Senti uma diferença na questão de costume, de como estudar e fazer as provas. Fica mais difícil quando você nem sabe como correr atrás", diz.
Secretário-executivo da Andifes (associação dos dirigentes das universidades federais), Gustavo Balduíno diz que quase todas as instituições se preocupam com atendimento a alunos carentes.
"Mas são problemas para os quais precisamos procurar soluções de forma permanente", diz ele, citando exemplos como da UFABC, que tem curso de reforço em matemática.
HISTÓRICO
A primeira universidade de grande porte a adotar as cotas foi a Uerj, em 2003. Em 2012, o governo federal aprovou lei que determinou que 50% das vagas nas federais devam ser ocupadas por alunos de colégios públicos.
Dentro dessa reserva, há subcotas, considerando cor da pele e baixa renda.
Outras instituições, em vez de determinar uma cota, preferiam dar bônus aos estudantes da rede pública no vestibular. Era o caso da USP.
Neste ano, porém, a universidade decidiu aprovar também reserva de vagas, de 50%, reaquecendo o debate sobre a política (como instituição estadual, ela não precisaria cumprir a lei federal).
Crítico da decisão, o professor Sérgio Almeida, da Faculdade de Economia da USP, diz que o debate carece de informações científicas.
"Como não definem muito bem o objetivo, a opção foi fazer uma coisa universal. Mas há cursos que não precisam de cotas e outros que precisaria de política até mais agressiva, como medicina."
Para a turma que ingressará no ano que vem na USP, haverá cota inclusive racial. Esta modalidade é a que causa mais controvérsia no país, pois muitos especialistas consideram impossível classificar pessoas segundo raças.
O levantamento da Folha mostra que há ainda dificuldade adicional. O desempenho dos cotistas que entraram por reserva racial é inferior ao dos demais cotistas. Em 22 cursos, eles tiveram média ao menos 10% inferior.
ENADE
Os dados do Enade analisados pela Folha mostram que, em 37 de 64 cursos, as notas dos cotistas raciais tem uma média inferior a 5% do que a dos não cotistas. Nos outros 27, as médias dos cotistas raciais são similares (até 5% menor) ou superior.
O Enade permite identificar uma realidade ampla, mas tem limitações. Não há garantia de empenho dos estudantes na prova, uma vez que a nota não conta para o estudante -a reportagem excluiu dados de quem deixou a prova em branco.
Outra questão é de amostra. Estudantes que fizeram a avaliação entre 2014 a 2016 ingressaram quando não havia lei de cotas nas federais ou os percentuais de inclusão eram ainda tímidos. Sobretudo com relação a cotistas raciais, uma baixa quantidade de beneficiados fragiliza uma análise mais conclusiva sobre esse grupo.
Em 2003, as federais tinham 34,2% de alunos pretos e pardos. Em 2014, esse índice subiu para 47,6% (em uma população de 53%). Os dados são da Andifes (associação dos reitores das instituições federais). Os dados escondem a baixa inclusão em cursos concorridos.
FRAUDES
Após a discussão sobre a pertinência de cotas nas universidades (que teve a adesão neste ano de USP e Unicamp, as duas últimas grandes do país que resistiam ao sistema), denúncias de fraudes na ocupação de vagas destinadas a negros e indígenas têm representado um novo capítulo de polêmicas.
Como o critério geral é o de autodeclaração, estudantes brancos têm ocupado as vagas ao se inscreverem pelos critérios raciais. Dados do sistema de seleção das federais mostram que as notas de corte nas vagas destinadas a esse grupo são menores.
Em setembro, Folha revelou fraudes na Universidade Federal de Minas Gerais. A instituição prometeu refinar o sistema de comprovação, e o Ministério Público Federal abriu investigação.
Após denúncia de fraudes, a Unesp (Universidade Estadual Paulista) criou uma comissão de verificação no meio deste ano. "A ideia é assegurar a efetividade da política. Há preocupação para não constranger ninguém, abrindo a possibilidade de o aluno nos apresentar o que o levou a se declarar", afirma Juarez Xavier, da pró-reitoria de extensão universitária.
O professor Xavier, que é do movimento negro, diz que a discussão se refere a um momento específico do Brasil. "Temos tido a primeira experiência no mundo em cotas para a maioria da população, é um desafio lidar com isso."
Pelo censo populacional, 53% da população é negra. Nos Estados Unidos, por exemplo, são 12%.
O diretor da ONG Educafro, frei David Santos, afirma que as denúncias estão se avolumando. Ele defende estratégias de verificação dos aprovados -um entendimento que, segundo ele, amadureceu no movimento negro. "Queremos que as universidades façam editais específicos para negros ocuparem as vagas ociosas por causa de fraudes."
Para Gustavo Balduíno, da Andifes (que reúne dirigentes das federais), as denúncias não podem colocar os projetos em xeque. "Esses casos são residuais e não comprometem a política."
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