11 de agosto de 2013

MARCELO LEITE Guerras biológicas


O mais saliente na natureza humana talvez seja o vasto potencial para ramificar-se em manifestações culturais
Predomina hoje a noção de que a violência tem raízes biológicas. Uma mixórdia de evidências e especulações refoga neurociência, genética e darwinismo com pitadas de antropologia para concluir que, no fundo, somos todos trogloditas.
Não faltam exemplos de comportamento violento e irracional nos dias de hoje. Basta ver a PM e o Black Bloc em ação. Obviamente, são casos extremos, excepcionais. A maioria das pessoas é pacífica.
Uma saída comum para justificar a anomalia consiste em tratar a violência como um resquício do passado natural da espécie humana.
O raciocínio segue assim: o homem nasceu guerreiro e terminou por civilizar-se, preferindo cooperar a agredir. A seleção natural o pôs no bom caminho, pois haveria mais vantagens para os indivíduos, em termos de sobrevivência, na colaboração (até para vencer guerras).
Como ninguém tem acesso ao que de fato acontecia na origem da espécie, uns 100 mil anos atrás, a reconstrução se vale de povos caçadores-coletores do presente. Ali estaria a demonstração viva da equação entre "primitivo" e "violento".
Essa visão aproxima figuras célebres como Edward O. Wilson, Stephen Pinker, Jared Diamond e Napoleon Chagnon. Ganha adeptos até entre filósofos e economistas. Um destes é Samuel Bowles, do Instituto Santa Fé (Novo México, EUA).
Bowles levantou uma polêmica sobre o tema na edição de 20 de julho do semanário "The Economist", leitura obrigatória entre poderosos (o germe ultradarwinista não se contenta com os limites estreitos da população universitária).
Bowles reagia a uma reportagem da revista sobre o trabalho antropológico de Douglas Fry e Patrik Söderberg, da Universidade Abo Akademi (Finlândia). No periódico acadêmico "Science" daquela semana, eles tinham lançado um desafio aberto à tese da guerra primordial: pelas suas contas, a maioria dos povos naturais tem índole pacífica e haveria mais violência dentro dos grupos do que guerras entre eles.
A dupla extraiu dados sobre 148 mortes violentas entre 21 grupos indígenas em estudos etnográficos clássicos. Concluiu que a maioria (55%) resultava de violência entre indivíduos, motivados por vingança ou disputa por alguma mulher, e não de conflitos entre tribos.
Surgiram várias objeções ao trabalho. Bowles, por exemplo, argumenta com razão que guerras não precisam causar o maior número de mortes para ter um impacto na evolução de comportamentos sociais.
O furo maior, contudo, se encontra na própria amostra de Fry e Söderberg: o povo tiwi, da Austrália, que responde por quase metade (69) das mortes estudadas. Os tiwis destoam não só pela violência, mas também por praticá-la em grupo.
Das duas, uma: ou se nega a eles a condição de humanos ou algo na disposição natural do homem possibilita que se comportem assim.
A resposta para esse dilema é que a característica mais saliente da natureza humana talvez seja o vasto potencial para ramificar-se em manifestações culturais, ainda que contidas entre balizas universais (como a interdição do incesto).
Não tem nada a ver com relativismo ou com achar que a violência, se for ritual ou tradicional, pode ser aceitável. Não pode, ponto.
Essa história de estado de natureza é uma gororoba do século 17, e nem mesmo o tempero científico do 21 a tornará mais palatável.
Folha de S.Paulo, 10/8/2013

    Nenhum comentário:

    Postar um comentário