13 de dezembro de 2014

DEMÉTRIO MAGNOLI Página virada


Nos EUA e Brasil, o Estado almeja fazer da memória instrumento do perdão. É o caminho rumo ao esquecimento
Eric Fair, linguista especializado em árabe, trabalhou como interrogador na prisão de Abu Ghraib, convertendo-se em torturador. Depois, atormentado, passou a escrever sobre a sua história. "Eu fracassei em desobedecer uma ordem indigna, fracassei em proteger um prisioneiro sob minha custódia e fracassei em manter os padrões de decência humana. Comprometi meus valores. Nunca vou me perdoar." A memória, para Fair, é um obstáculo ao perdão. Nos EUA e no Brasil, o Estado almeja fazer da memória o instrumento do perdão. É o caminho seguro rumo ao esquecimento.
O Senado americano publicou extratos de um relatório devastador sobre a política de tortura na "guerra ao terror". Hoje, admite-se oficialmente que o governo de George W. Bush violou leis nacionais e tratados internacionais, erguendo uma rede de centros secretos de tortura em diversos países. Barack Obama declarou que a publicação deveria "ajudar-nos a relegar essas técnicas ao passado". É um gesto de saudação aos valores, antes de enterrá-los na cova da Razão de Estado.
A Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicou um relatório sem revelações dramáticas, mas com uma lista dos responsáveis pelas torturas e "desaparecimentos" durante a ditadura militar. A CNV acatou parte da sua missão, contando uma história enviesada, que oculta as vítimas dos grupos de resistência armada, mas insurgiu-se contra a outra parte, recomendando a responsabilização criminal dos torturadores. Em nome da Razão de Estado, o governo brasileiro recepciona a engenharia política da memória e rejeita a exigência moral de produção de justiça.
Os EUA combatiam um inimigo externo: uma organização terrorista amparada pelo Estado afegão. Mesmo assim, na prisão, não existem "dois lados", mas prisioneiros indefesos. "Um homem sem rosto olha para mim do canto da cela. Ele implora por ajuda, mas temo me mover. Ele começa a chorar e grita --mas, quando acordo, descubro que os gritos são meus." Nos pesadelos de Eric Fair, a tortura não tem uma desculpa política. O relatório do Senado evita, decentemente, usar o álibi do "outro lado" para relativizar os crimes de Estado.
No Brasil, não houve guerra e inexistia a figura do inimigo externo. Por aqui, um regime ilegal aterrorizava opositores políticos, desarmados ou armados, por meio do aparelho clandestino de torturas. O propósito não era obter informações sobre ações de terror, mas aterrorizar e calar por meio do exemplo. A expressão "dois lados" é a senha invariável utilizada pelos defensores do "perdão" e do "esquecimento" --isto é, de fato, da cristalização da impunidade. Eles não são capazes de enxergar seu próprio rosto no homem sem face que grita num canto.
"Anistia é esquecimento, virada de página, perdão para os dois lados", proclamou Marco Aurélio Mello. Segundo o ministro do STF, a Lei de Anistia não é uma lei qualquer, passível de revisão constitucional ou anulação parlamentar, mas um pilar sagrado do Estado brasileiro. Na sua fórmula, o "perdão" não é um fruto da memória, mas do "esquecimento". De certo modo, ele tem razão: não existe memória sem sentença --e o "perdão" equivale à absolvição.
Um mês atrás, Eric Fair exibiu fotos das torturas em Abu Ghraib a seus alunos universitários, que reagiram com "gestos vagos" ou "apenas bocejaram". A foto de Vladimir Herzog enforcado em sua cela não provoca mais que isso entre a maioria dos jovens brasileiros. A verdade daquelas imagens só pode se transformar em memória pela mediação de sentenças judiciais. "A menos que esse relatório conduza a processos, a tortura continuará a ser uma opção política para futuros presidentes", prognosticou Kenneth Roth, da Human Rights Watch. O Brasil tortura tanto nas suas prisões porque escolheu o "esquecimento".
"Eu não mereço perdão", escreveu Eric Fair. Bush e Médici, menos ainda.

folha de s.paulo,13/12/2014

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