9 de setembro de 2015

O preconceito na sala de aula


08 de setembro de 2015

Das 530 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 330 mil são negras


Fonte: Folha de Pernambuco (PE)



Foi por causa da cor da pele que a pequena Kauany Beatriz, de 8 anos, passou a conviver, desde cedo, com injúrias e preconceito. Com dificuldade para enxergar de longe, ela buscava se acomodar nos primeiros assentos da sala de aula para poder ler o que o professor escrevia no quadro. Foi suficiente para a criança negra ser alvo de situações que velam o racismo de hoje e de amanhã. "Falavam do cabelo dela, chamavam de cabelo de fubá. Isso partia dos colegas. Mas eu notava que professores também não davam atenção. Ela era excluída", conta a bisavó da menina, a aposentada Creusa Marques, 68, que decidiu tirar a criança da escola. "O trauma travou ela. Ela não sabia ler, ficava pelos cantos", complementa.

O drama da garota é mais comum do que se pensa. Os fatores, muitos. Passam não só pela discriminação, mas pela necessidade de ajudar em casa e pelo difícil acesso à educação. A estimativa é de que, das 530 mil crianças de sete a 14 anos fora da escola, 330 mil sejam negras, o que significa 30% mais chance de estar nessa situação que um branco. Segundo relatório do movimento Todos pela Educação, divulgado em julho, os índices de repetência também são alarmantes. Jovens declarados brancos que concluíram o Ensino Médio aos 19 anos são 65%. Os negros, 45%.

Na visão de quem lida com o tema, garantir a efetividade da Lei 10.639/03, que prevê o ensino da história e cultura afro, seria um passo para tentar mudar esse cenário. "O fator-chave é a falta de acolhimento que essa juventude tem nas unidades de ensino. A escola ainda não está preparada para receber seus clientes, a maioria negra. Ela é pensada numa visão eurocêntrica. É preciso mudar isso para que os alunos possam manifestar suas diferenças culturais, sua religião", defende o conselheiro político do Movimento Negro Unificado (MNU) de Pernambuco, José de Oliveira.

No caso de Kauany, uma luz surgiu no fim do túnel. Após três meses sem estudar, ela conseguiu apoio da comunidade e foi matriculada numa escola municipal situada no bairro da Tabajara, em Paulista, onde mora. Hoje está no 3º ano do Ensino Fundamental, mas a lembrança das humilhações ainda se revela no olhar quieto, desconfiado. "Chamam isso de bullying, de racismo. Seja o que for, isso mexe com ela até hoje. Nunca ser rainha do milho, sempre ficar de lado. Colocamos num reforço e, pouco a pouco, ela foi aprendendo a ler, mas ainda estamos na luta", declara dona Creusa.

Em outra rua não muito distante dali, outra história parecida: a do aluno do 3º ano Adriano Glicério, 9. Além de chamado de ser chamando "pretinho" e "escurinho", ele já voltou para casa chateado com outros termos pejorativos - inclusive durante o tratamento de seu lábio leporino. "Tento dizer que são brincadeiras de criança, mas sei que vai chegar a hora de conversar sério. Tenho notado que ele vem ficando com preconceito com ele mesmo. Fica se negando, dizendo que é marrom, que não é preto", relata a manicure Zumira Glicério, 44, mãe do garoto. "Eu mesma já passei por situações assim quando pequena e, depois, em entrevistas de emprego. Falavam da minha cor, das minhas feições. Machuca. Não quero isso para meu filho".

Políticas públicas
Quem trabalha na promoção de políticas públicas reconhece que o racismo ainda persiste nas escolas. Com o intuito de mudar isso, tem-se buscado soluções mais abrangentes e integradas, como a construção de um plano de Educação das Relações Étnico-Raciais para apontar caminhos para as redes estadual e municipais de ensino. "A população negra não tem tido direito de saber sua verdadeira história. Ela não está nos livros. O negro só se reconhece pelo amor ou pela dor. Por isso, temos que trabalhar a conscientização. Um desafio é interiorizar as ações", indica Marta Almeida, coordenadora do MNU-PE e integrante da Coordenadoria Estadual de Igualdade Racial. "Temos editais e formações que têm buscado fazer da Lei da História e Cultura Afro uma realidade. Sabemos que não adianta só capacitar o educador, e o vigilante (da escola) ser preconceituoso", explica.

No mesmo sentido, o vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Carlos Nicodemos, lembra que existe uma questão histórica que precisa ser enfrentada e que a estratégia de planos individualizados de combate ao racismo e a outros fatores que tiram as crianças e adolescentes negros da escola está sendo revisada. "Trabalhamos para formular, junto a estados e municípios, uma política nacional que adote medidas integradoras, concebidas numa matriz, em direção a pilares que sustentam essa realidade, como a violação do direito da convivência familiar e o trabalho infantil", elenca. "A gente precisa revisitar essa política sob o enfoque da criança e do adolescente", finaliza.

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