Casal se beijando
Segundo pesquisa, 27% dos brasileiros iniciam sua vida sexual antes dos 15 anos
Aberta para discussão pública até o dia 15 de dezembro, a Base Nacional Comum Curriculardeterminará o conteúdo que todas as escolas do País deverão ensinar, garantindo desta forma equidade ao sistema educacional.
O documento é uma substituição aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), criados pelo governo federal com a finalidade de servir como referência na elaboração dos currículos das redes.
A análise do texto da Base, porém, revela que a orientação sexual, antes contemplada pelos PCNs como um dos temas transversais a ser trabalhado em sala de aula, não aparece entre os chamados temas integradores do novo documento.
Os temas integradores dizem respeito a questões que atravessam as experiências dos sujeitos em seus contextos de vida, contemplando aspectos para além da dimensão cognitiva, dando conta da formação política, ética e identitária dos estudantes.
A supressão salta aos olhos já que todos os outros temas antes classificados como transversais pelos PCNs ganharam equivalentes na Base como Meio Ambiente que passou a chamar-se Sustentabilidade ou Pluralidade Cultural que transformou-se em Culturas Africanas e Indígenas, como mostra a tabela abaixo.
 
Temas Transversais – PCNsTemas Integradores – BNCC
 Trabalho e Consumo (só no Fundamental II) Consumo e Educação Financeira
 Ética Ética, Direitos Humanos e Cidadania
 Não tinha estatuto de “tema transversal”, mas todos os documentos faziam referência ao assunto Tecnologias Digitais
 Pluraridade Cultural Culturas Africanas e Indígenas
 Meio Ambiente Sustentabilidade
 Orientação Sexual –

Para Marcelo Daniliauskas, doutorando pela Faculdade de Educação da USP e especialista em políticas públicas sobre gênero e sexualidade, a omissão do assunto revela um retrocesso. “A questão do gênero e da sexualidade aparece muito pontualmente na Base, é um tópico dentro de algumas disciplinas, às vezes o correspondente à uma aula no ano inteiro. A sexualidade ainda parece muito dentro de Biologia, numa perspectiva do corpo e não de identidade, de viver em sociedade, de respeito ao outro”, analisa.
Esta perspectiva parece derivar da própria concepção que estrutura a Base, extremamente organizada em termos de séries e disciplinas. Enquanto tema transversal proposto pelos PCNs, a orientação sexual podia ser discutida desde o primeiro ano do Ensino Fundamental até o último do Ensino Médio, isto é, deveria permear toda a educação do aluno.
Mas ao estabelecer os tópicos exatamente de acordo com cada ano da Educação Básica, a Base retoma uma visão de educação seriada, disciplinar e segmentada, o que dificulta a discussão de outras temáticas.
“Em minha opinião, a Base está invertida. O que estão postos como princípios e que não estão detalhados é que deveriam ser a essência do documento. A Base foi pensada para termos uma escola que faça sentido para o aluno e visando o tipo de cidadão que a gente quer formar. Porque são exatamente os temas delicados, não só no sentido de preconceito, mas de formação cidadã, política, que precisam ser garantidos. Mas a Base ficou meramente técnica, de conhecimentos e habilidades muito específicos”, critica Daniliauskas.
Tendo em vista a escola como um local privilegiado para implementação de políticas que promovam a saúde e a informação, a supressão da orientação sexual do documento traz uma série de prejuízos, diz o especialista.
“Tem um rastro de porque essa temática foi parar na escola. Foram feitas pesquisas que mostravam que os pais não se sentiam confortáveis de falar de sexualidade com seus filhos e que seria importante ter essa temática na escola para poder discutir isso de uma forma mais educativa, embasada, consciente”.
Segundo a Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira de 15 a 54 anos de idade (PCAP), aproximadamente 27% dos brasileiros iniciam sua vida sexual antes dos 15 anos. Essa média sobe para 40% entre os meninos.
“Ou seja, se a gente tá querendo discutir uma sexualidade saudável, refletida, planejada, precisamos discutir antes que aconteça. O problema é que mesmo quando não se discute não significa que você não está não dando uma formação sobre sexualidade. Se você evita tocar no tema você está dando uma formação que é ‘não se pode falar sobre isso’”.
Onda conservadora
O silêncio sobre a orientação sexual na Base parece dialogar com a recente polêmica envolvendo a retirada de menções a gêneros nos planos estaduais e municipais de educação.

“A Base parece ter incorporado pressões de certos grupos mais conservadores e, sobretudo, fundamentalistas. Eles estão deturpando toda a discussão, acham que querem transformar seus filhos em gays, nisso, naquilo. O que é um absurdo, ninguém quer transformar ninguém em nada, só lidar com que existe de real e mostrar como conviver juntos. Enfim, viver uma sexualidade com informação”, diz.
Maria Helena Vilela, diretora executiva do Instituto Kaplan, que trabalha com a educação sexual de adolescentes, concorda. “Quando se fala em Educação Sexual hoje, os pais entram em pânico porque não sabem de fato do que se trata e acham que tudo se resume à discussão de gênero. Muitas vezes, o que eles sabem é o que foi colocado na rede social pelos fundamentalistas. O resultado disso é que hoje vivemos em uma polêmica e a Educação Sexual voltou a ser um trabalho daquelas escolas que tem mais sensibilidade, que veem que não dá para fechar os olhos para isso”.
Neste sentido, a Base é um passo para trás e revela incoerências. “O discurso do MEC é o seguinte: a Base é um mínimo e os estados e municípios teriam uma margem para trabalhar outros temas importantes, ou seja, essa parte transversal, que não tem a ver com questões estritamente disciplinares. Só que dentro do texto tem um componente curricular chamado Ensino Religioso, que vai do primeiro ao nono ano. Então se está tudo fora porque só religião está dentro? Ou trata-se só de disciplinas ou põe tudo de volta”.
O especialista defende que, assim como a sexualidade, a religião deve ser um assunto contemplado pela escola, mas de maneira crítica e plural.
“Tanto que isso está em discussão no Supremo Tribunal, que está questionando se pode ou não instituir ensino religioso com receio que grupos comecem a disputar esses cursos para promover suas próprias religiões. Porque, na teoria, o ensino religioso no currículo deveria ser para abordar a filosofia, as perspectivas de diversas religiões. Só que na prática como é que você assegura que isso vai acontecer?”.
Daniliauskas lembra ainda que no caso da religião as pessoas têm seus templos, espaços próprios e específicos para discuti-la abertamente. “E nisso o tema se difere da sexualidade, não existe um espaço formal onde se possa falar abertamente sobre orientação sexual. E esse deveria ser um dos papéis da escola”.