Prefácio de Ricardo Abramovay
O encontro entre comunidades indígenas e a racionalidade econômica não está fadado a resultar em tragédia anunciada. É bem verdade que destruição, doenças e desagregação social são, de forma esmagadoramente predominante (e não só no Brasil) os principais produtos, para as sociedades nativas, de sua relação com os mercados. Mas as coisas podem ser diferentes. É o que começam a demonstrar, na prática, comunidades indígenas e ribeirinhas do Alto Xingu. Ao fazê-lo, elas estão contribuindo a um conjunto de atividades que se contrapõem à violência e ao desmatamento na Amazônia. Mais que isso, elas convidam a uma reflexão inovadora sobre um tema clássico das ciências sociais, a relação entre economia e sociedade, entre mercados e vida comunitária.
Este é o duplo interesse deste livro. Por um lado, ele é escrito por ativistas, por pessoas que buscam recursos e soluções práticas para os desafios de quem vive em áreas dispersas, desprovidas dos serviços básicos constitutivos da cidadania. Mas ele é também um texto de caráter reflexivo e auto-reflexivo sobre o alcance e os riscos de fortalecer os valores tradicionais dos povos da floresta, não por alguma espécie de redoma que os isolasse do restante da vida social, mas, ao contrário, estimulando a emergência de mercados que reconheçam e desenvolvam as funções decisivas destes povos num dos maiores desafios de nosso tempo: a transição do que tem sido até aqui uma economia da destruição para uma economia do conhecimento da natureza.
Não se trata de uma glorificação apologética da pureza arcadiana de quem está distante daquilo que convencionamos chamar de “civilização”. É na cultura material dos povos da floresta que se encontra a raiz de comportamentos produtivos capazes de contribuir à regeneração dos serviços ecossistêmicos que as atividades econômicas convencionais (agricultura, pecuária, e exploração madeireira) sistematicamente destroem. E esta cultura material envolve o manejo das áreas florestais, mas também a representação mental da floresta para a vida humana. A floresta é provedora de significados e não apenas de recursos. Se, como mostra Yuval Noah Harari, as sociedades contemporâneas são e serão cada vez mais marcadas pela dissociação entre poder e significado, entre nossas imensas e crescentes capacidades e a dificuldade cada vez maior em saber para que serve tanto poder, então os povos da floresta oferecem pistas fundamentais para encarar o problema.
A sacralização da natureza contada nos lindo mitos de origem aqui apresentados – como o do pequi, no capítulo 4, por exemplo – exprime uma cultura em que a espiritualidade toma conta das relações entre sociedade e natureza e por aí lhe dá sentido. O ensinamento que oferecem os povos da floresta não está nos próprios mitos de origem, mas na capacidade de ver, ouvir, interpretar e, mais que tudo, imprimir sentido ao que fazemos em nossa relação com o mundo material e vivo do qual dependemos.
O esforço para dominar e transformar a natureza segundo nossos desejos e nossas necessidades, a ideia de que ela é uma espécie de máquina viva à disposição de nossa inteligência e nossas tecnologias está na raiz da crise socioambiental dos dias de hoje. Os povos da floresta encontram-se então na fronteira do que tanto a ciência como as humanidades preconizam: reunificar aquilo que a era moderna tão radicalmente separou, sociedade e natureza. Esta reunificação envolve três dimensões centrais, que este livro ilustra de forma inspiradora.
A primeira se refere à própria ideia de “cadeia de valor dos produtos da biodiversidade”. Cada um dos produtos destas cadeias de valor é exposto aqui com base na ecologia da floresta como um todo. Não são plantações resultantes da criação de um ambiente artificial onde possam desenvolver-se graças a insumos trazidos de fora, sejam eles sementes, agrotóxicos ou fertilizantes. O aproveitamento do pequi, do mel de abelhas sem ferrão, da castanha do Pará, da seringueira e das sementes nativas para recomposição florestal se apoia na proteção e muitas vezes na regeneração da floresta da qual estes produtos dependem. Isso supõe intimidade, respeito e, sobretudo, conhecimento das condições que permitem manejar estes produtos sem destruir as bases de sua existência, ou seja, a própria floresta.
Num momento em que os serviços de polinização prestados à agricultura pelas abelhas encontram-se globalmente ameaçados, não é irrelevante que, como se mostra no capítulo 3, os Kawaiete conheçam nada menos que 44 variedades de abelhas nativas sem ferrão e possam discorrer sobre sua morfologia, seu comportamento, a biogeografia em que se inserem, seus hábitos de vida, sua alimentação e suas funções medicinais e espirituais. É com base neste conhecimento que os Kaiwete e o Instituto Socioambiental colaboram com a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), que desenvolveu em 2015 uma avaliação temática sobre polinizadores, polinização e produção de alimentos.
Mas será que ao estimular a inserção em mercados do mel da abelha sem ferrão e de outros produtos da biodiversidade, os autores deste livro não estão organizando as condições para que estas atividades sejam destruídas? Será que os mercados podem ser mais que mecanismos anônimos, em que unidades individuais (indivíduos e empresas) competem, sobre a base do menor preço e da melhor qualidade? Na resposta a esta pergunta está a segunda dimensão importante na abordagem do objetivo estratégico de reunificar sociedade e natureza, contido nas atividades aqui expostas.
Os novos mercados ligados à exploração sustentável dos produtos extrativistas não são simplesmente fenômenos emergentes, decorrentes da relação entre atores econômicos com interesses diversos. Eles não exprimem tampouco o desejo de algumas organizações em ampliar as oportunidades de mercado para os produtos extrativistas. Eles supõem, antes de tudo, a compreensão da forma como até aqui os produtos do extrativismo têm sido explorados. O ponto de partida, neste sentido, é a dependência secular dos povos da floresta com relação a comerciantes (os regatões e o sistema de aviamento) que abastecem as comunidades com produtos vindos das cidades e compram-lhes os resultados de suas atividades produtivas. São relações de mercado que a microeconomia caracteriza como incompletas e imperfeitas. Os preços não se formam em mecanismos competitivos dinâmicos. Ao contrário, eles exprimem, antes de tudo, poder e dominação social dos que vivem na floresta por aqueles que manuseiam não só as compras e as vendas, mas, sobretudo, as informações a elas referentes. Mas este poder e esta dominação supõem obrigações recíprocas (de exclusividade no fornecimento de produtos e de assistência aos beiradeiros em caso de necessidades e doenças) que não se suprimem do dia para a noite.
O fascinante na história dos mercados resultantes da exploração sustentável dos produtos extrativistas é que seus protagonistas em nenhum momento tiveram o objetivo de destruir estas formas tradicionais de comercialização. Ao contrário, aprenderam com elas e daí resultaram as cantinas, ou seja, a gestão da oferta de produtos não florestais às comunidades, por parte da própria comunidade. Ao mesmo tempo, o ISA empenhou-se em estabelecer o contato entre o extrativismo e empresas situadas nos centros dominantes do País. A base deste contato, no entanto, é explicitamente de natureza ético-valorativa: as empresas são as organizações que vão permitir às comunidades indígenas e ribeirinhas afirmar a preservação e toda a cosmologia mental em que ela se apoia fora do âmbito limitado da própria floresta. Para isso é necessário que os produtos do extrativismo se adaptem às demandas empresariais e à sensibilidade das empresas em detectar os hábitos e os desejos dos próprios consumidores. As empresas tornam-se assim vetores de contato entre comunidades tradicionais e um vasto conjunto de consumidores aos quais estas comunidades não tinham acesso direto.
Neste processo, as empresas levam aos povos da floresta com que têm contato inovações fundamentais: dirigentes empresariais visitam a região e, no contato com as lideranças não só conversam sobre o que é o mercado consumidor, mas levam inovações tecnológicas que permitem melhorar o processamento dos produtos e, portanto, sua aceitação nos mercados consumidores. Estabelecem esta relação empresas que se dispõem explicitamente a fazer com que os mercados a partir dos quais adquirem produtos do extrativismo seja uma forma de valorizar os serviços socioambientais prestados à sociedade como um todo pelos povos da floresta. As empresas passam a comprar produtos por preços superiores ao habitualmente praticado e um primeiro resultado desta prática é a elevação dos preços pelos quais os próprios regatões passam a adquirir estes produtos. A valorizaçãoo dos produtos da sociobiodiversidade faz com que o sentimento de inferioridade ligado tradicionalmente à condição de indígena ou beiradeiro é substituído pelo orgulho de desenvolver atividades sob as quais encontram-se valores cada vez mais importantes para a vida contemporânea. O resultado é um crescente interesse de jovens indígenas e ribeirinhos por atividades extrativistas vistas até recentemente como algo atrasado e sem futuro.
A terceira contribuição deste livro ao objetivo de reunificar sociedade e natureza está na capacidade de seus atores em colocarem em relação mundos sociais cuja hostilidade recíproca não poderia ser maior. O exemplo mais emblemático deste esforço é o Programa Y Ikatu Xingu, lançado em 2004 pelo Instituto Socioambiental. Trata-se de promover a restauração florestal com base no uso de sementes nativas. O problema é que os fazendeiros, em sua quase totalidade, são preparados tecnicamente para plantar soja ou criar gado, mas não têm a menor ideia sobre reflorestamento com sementes nativas. Além disso, é generalizada a pressão para que as plantações avancem sobre territórios indígenas e reservas florestas. A tensão entre fazendeiros e indígenas é, portanto, imensa. E foi neste contexto que os técnicos do ISA desenvolveram máquinas que facilitam o trabalho de plantio de sementes nativas por parte dos fazendeiros. Ao mesmo tempo, estimularam contatos entre estas comunidades que passaram a vender estas sementes e transmitir seus conhecimentos de manejo aos fazendeiros com o objetivo de facilitar a restauração florestal.
Montesquieu dizia que o comércio adoça os costumes. O projeto Y Ikatu Xingu, e sua filha, a Rede de Sementes do Xingu, tratada na segunda parte do livro, abrem um caminho importante em que a tensão entre fazendeiros e indígenas vai sendo substituída por cooperação baseada no valor e na importância da preservação. Claro que isso não se faz sem conflitos. Parte das lideranças indígenas (para nada dizer dos fazendeiros) simplesmente rejeitava esta cooperação sob o pretexto de que se os fazendeiros desmataram, eles que se virem para recuperar o dano que provocaram. Mas outras lideranças, ao contrário, viram aí uma oportunidade e o projeto hoje já traz resultados significativos.
É claro que o pressuposto das atividades aqui apresentadas reside na baixa densidade demográfica da ocupação humana nos territórios em que elas se desenvolvem. Esta baixa densidade é condição essencial para que o extrativismo seja um vetor de preservação e regeneração florestal. Mas isso não retira o alcance universal das iniciativas descritas neste livro, por duas razões fundamentais.
A primeira é que são maiores as chances de fortalecer as áreas protegidas se nelas residirem populações com o acesso aos meios e aos dispositivos de levar adiante uma verdadeira economia do conhecimento da natureza. Na interação entre a pesquisa científica e estes conhecimentos tradicionais encontra-se um dos mais férteis campos em que a inovação tecnológica dos países megadiversos, como o Brasil, pode avançar.
A segunda é que o trabalho levado adiante pelas comunidades ribeirinhas, pelo ISA, pelo IMAFLORA, pelas empresas cujas atividades são descritas neste livro são um passo decisivo para a emergência de uma economia que se apoie em valores éticos e que contribua para reunificar aquilo que o mundo moderno continua separando: sociedade e natureza.
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O livro Xingu – Histórias dos produtos da floresta (São Paulo, ISA, 2017) é escrito por vários autores e organizado por André Villas-Bôas, Natalia Ribas Guerrero, Rodrigo Gravina Prates Junqueira e Augusto Postigo. A publicação pode ser comprada pelo site do ISA.
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