A cada 20 minutos, uma mulher é estuprada no país asiático; só 1 em 50 casos é relatado à polícia, que muitas vezes culpa a vítima
PATRÍCIA CAMPOS MELLOENVIADA ESPECIAL A NOVA DÉLI, Folha de SP, 20/1/2013
Nirbhaya, a estudante de 23 anos que foi estuprada por seis homens em um ônibus de Nova Déli em dezembro, é um retrato da falta de segurança das mulheres na Índia.
A cada 20 minutos, uma mulher é estuprada no país. Muitas são vítimas dos chamados estupros de gangue, em que vários homens atacam ao mesmo tempo.
Mas só uma de cada 50 vítimas de estupro tem coragem de dar queixa na polícia. Isso porque, na maioria das vezes, a polícia culpa a própria mulher. E as vítimas de estupro se transformam em párias, são evitadas na sociedade e nunca mais conseguem se casar.
Karuna (nome trocado), 26, saiu de seu Estado natal de West Bengal para trabalhar como empregada doméstica em uma casa em Nova Déli, onde ganhava o equivalente a US$ 40 por mês. Na mesma casa, trabalhava Shyam.
Um dia, Shyam disse que ia levar Karuna para procurar um outro emprego com salário melhor, mas a trancou em uma casa abandonada.
"Ele disse que ninguém sabia que eu estava lá e que, se eu não cedesse, ele ia me matar", contou Karuna à Folha.
Ela ficou na casa entre quatro e cinco dias, e ele a estuprou repetidas vezes. Depois, ele a levou para a casa onde morava com a mãe dele. Lá, ela era sujeita a trabalho escravo, estuprada por Shyam e espancada pela mãe dele.
Após alguns meses, conseguiu fugir e foi à polícia. Não registraram o caso. "Disseram que eu era uma aproveitadora que vinha do vilarejo, pobre e queria ganhar um dinheiro em cima de alguém", conta. "Eu dizia que tinha sido estuprada e os policiais riam, não acreditavam, falavam que um caso desses não chegaria a lugar nenhum." Tentou mais cinco vezes dar queixa, sem sucesso.
Depois do estupro de Nirbhaya, Karuna foi a uma das centenas de manifestações em Déli. Lá, conheceu uma mulher de uma ONG, que foi com ela à delegacia. "Provavelmente porque havia pressão popular, finalmente registraram a queixa."
Shyam e sua mãe foram detidos no fim de dezembro. "Achei que finalmente ia conseguir justiça." Alguns dias depois, uma policial chamou Karuna à delegacia.
"Ela disse que tinha um negócio a me propor: se eu retirasse a queixa, ele prometia casar comigo, ou então eles me dariam 150 mil rúpias (US$ 2.770), que eu teria de dividir com a policial, para retirar a queixa. Eu disse não. Disse que queria justiça."
Estima-se que só 1 em cada 50 casos de estupro sejam levados à polícia. Desses, só 26% resultam em condenação -cerca de 0,5% do total.
'MORTES POR DOTE'
Segundo Pulkit Sharma, psicólogo especializado em vitimas de estupro, na sociedade indiana as mulheres são encaradas como meros objetos para satisfazer às necessidades do homem.
Para a ativista Shazia Ilmi, a desvalorização da mulher começa na cultura do dote e da seleção sexual. Para casar as filhas, os pais precisam pagar um dote aos futuros maridos, o que muitas vezes é um enorme peso financeiro.
Em 2012 houve 8.618 "mortes por dote" -assassinatos de mulheres quando não há pagamento do dote ou o valor é considerado muito baixo e o homem quer casar de novo e obter um dote maior.
A seleção sexual, embora proibida na Índia, também é prevalente. Abortar fetos femininos é muito comum. A Índia proíbe os médicos de informar aos pais o sexo da criança após exames, mas muitos casais de classe média vão para a Tailândia fazê-los e depois realizam abortos.
Em 2011, havia na Índia 623.724.248 homens e 586.469.174 mulheres. Para cada 1.000 bebês homens, nasciam 914 meninas.
As mulheres em Déli, considerada a capital do estupro, não andam sozinhas depois que escurece. É muito comum serem apalpadas nos ônibus e metrôs."Meus pais não me deixam sair sozinha depois que escurece, e ando sempre com spray de pimenta e estilete para me defender", diz a estudante Tanya Gupta, 18.
Madhu Mehra, diretora executiva da ONG Partners for Law in Development, luta para que a Índia adote uma política de "tolerância zero" para crimes contra mulheres. Hoje, a pena mínima para estupro é de sete anos, mas pode ser reduzida pelo juiz.
Algumas vezes, nos veredictos, o juiz diz que a vagina da vítima não estava muito ferida e, por isso, ela estava habituada a sexo e não pode ter sido estupro. Só nos casos de estupro seguido de assassinato com crueldade, "os mais raros dos raros", está prevista a pena de morte.
Mas qualquer agressão sexual contra mulher que não envolva penetração é considerada "ultraje à decência", uma lei anacrônica do tempo colonial, e prevê pena de apenas dois anos. Práticas comuns de humilhação de mulheres na Índia, como jogar ácido no rosto e despir e bolinar mulheres em público, são "ultraje à decência".
Em 2012, uma menina de 16 anos foi despida por dez homens, que desfilaram com ela nua pelas ruas de Guwahati por 45 minutos e a bolinaram em público. Um repórter filmou tudo, e o vídeo foi parar na internet. Os homens foram condenados a dois anos, mas recorrem e ainda podem se livrar da prisão.
"Precisamos sinalizar que qualquer intimidação à mulher é inaceitável", diz Mehra.
REAÇÃO VIOLENTA
O governo formou comissão para estudar mudanças na lei, entre elas criação de mais tribunais "rápidos" para crimes contra a mulher e adoção de penas mais duras.
"Mas é preciso mudar a cultura. As mulheres agora trabalham, usam roupas ocidentais, e os homens não aceitam isso. Há uma reação violenta", afirma Mehra.
A própria reação dos políticos e figuras públicas após o estupro de Nirbhaya demonstra o machismo da sociedade indiana.
"A vítima é tão culpada quanto os estupradores. Ela deveria ter chamado os agressores de irmãos e implorado para eles pararem", disse o guru Asaram Bapu.
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