25 de setembro de 2017

Como Darwin matou a charada do processo civilizador, José Eli da Veiga


A parte não humana da natureza é absolutamente regida pela lei da seleção natural, mas sua parte humana só o é de forma relativa
Como em novembro será lançado o livro Amor à Ciência – Ensaios sobre o materialismo darwiniano, aqui vai uma de suas passagens mais curiosas.
Depois que estudos sobre os procedimentos de domesticação de plantas e animais levaram Charles Darwin a comprovar a importância da seleção, sobrou-lhe uma verdadeira charada: como aplicar esse conceito a organismos que vivem em estado natural? E ela só foi solucionada quando sucedeu-lhe ler – para se distrair – uma obra publicada anonimamente 40 anos antes: Um Ensaio sobre o Princípio de População.
Sim, deve-se à essa tão malhada obra do pai da demografia – Thomas Robert Malthus – o estalo que deu a Darwin um esquema teórico com o qual trabalhar: a inferência de que, no processo de formação e evolução das espécies, variações favoráveis à sobrevivência dos organismos tendem a ser preservadas, enquanto as desfavoráveis vão sendo eliminadas.
Merece muita atenção, portanto, essa conexão entre a teoria da seleção natural e a desmentida tese de Malthus, motivo de um gigantesco mal-entendido, ainda bastante em voga entre marxistas, mas não só.
Pois atribuir malthusianismo ao núcleo da teoria darwiniana é um disparate, que no caso de Karl Marx até pode ser atribuído ao fato de nem ter lido a segunda grande obra de Darwin, de 1871: A Descendência do Homem.
Por mais incrível que possa parecer, o raciocínio demográfico do reverendo Malthus resultou diretamente de leituras sobre os fatos verídicos que, quase um século antes, haviam inspirado o escritor Daniel Defoe a criar Robinson Crusoé. Acontecimentos em uma ilha da costa do Chile em que um marinheiro escocês permanecera por mais de quatro anos.
A atenção de Malthus foi suscitada por depoimentos de navegadores, segundo os quais a exótica introdução de alguns poucos caprinos por precursores espanhóis provocara superpopulação. Mas, assim que um casal de galgos foi ali deixado por viajantes ingleses, não demorou para que se estabelecesse um equilíbrio dinâmico. Alguns rebanhos de caprinos sobreviveram em áreas rochosas de altitude, que chegam a 1.500 metros, enquanto as partes mais baixas passaram a ser superpovoadas pelos caninos.
Nessa concomitante adaptação das duas espécies, houve óbvia sobrevivência dos indivíduos que se mostravam mais aptos, em uma luta pela vida dependente da competição por recursos escassos, essencialmente alimentares. Só os caprinos que se mostraram mais resilientes ao choque provocado pela chegada dos galgos puderam se adaptar às inóspitas condições do ecossistema de altitude. Os menos capazes foram eliminados.
Em notável pirueta lógica, Malthus fez a transposição para populações humanas de tão exemplar constatação biológica, a respeito de relações entre espécies animais e delas com espécies vegetais. Por deixar de lado um dos principais vetores do processo civilizador – a capacidade de inovação – foi levado a prognosticar rápida e inevitável explosão populacional em nações que já se encontravam densamente povoadas. Por isso deu força aos que há muito vinham combatendo as políticas britânicas de amparo aos menos favorecidos. Seria como proteger caprinos que fossem incapazes de se manter nos mais áridos meios das montanhas da ilha que hoje se chama Robinson Crusoé.
Se Darwin tivesse concordado com a pirueta malthusiana, em vez de tratar exclusivamente de espécies animais e vegetais em sua primeira grande obra – A Origem das Espécies – com certeza nela teria incluído ao menos um capítulo sobre a espécie humana. Preferiu a prudência.
Mas, com o imediato e espetacular sucesso obtido, tornou-se inevitável que ela fosse indevidamente extrapolada para o caso da humanidade, pois isso jogava água no moinho de duas ideologias já bem estabelecidas e muito em voga: uma radicalmente liberal e outra conservadora mais autoritária. Se só sobrevivem os mais aptos, qual poderia ser o sentido de ajudar os pobres, perguntavam os primeiros, enquanto os outros logo propunham que se ajudasse a natureza eliminando os menos aptos via eugenia.
A discordância de Darwin sobre tais extrapolações foi fartamente confirmada com a publicação da sua segunda grande obra. Três afirmações sintetizadas na conclusão são suficientes para que se perceba que a história da espécie humana o levou bem além da teoria exposta na primeira, publicada 12 anos antes:
  • No que diz respeito à natureza do homem, outros fatores superaram a luta pela existência, por mais que ela tenha sido importante e ainda o seja.
  • As qualidades morais avançaram muito mais devido às consequências dos hábitos, dos poderes de raciocínio, da instrução, da religião etc., do que dos efeitos da seleção natural.
  • Foram instintos sociais que proporcionaram o desenvolvimento moral.
Para Darwin, a parte não humana da natureza é absolutamente regida pela lei da seleção natural, mas sua parte humana só o é de forma relativa, pois o processo civilizador generaliza e institucionaliza condutas que se opõem à livre operação de tal lei.
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JOSÉ ELI DA VEIGA é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de Amor à Ciência – Ensaios sobre o materialismo darwiniano (Ed. Senac-SP, 2017). www.zeeli.pro.br

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