27 de janeiro de 2013

A poesia de Paulo Freire


São Paulo, anos 70
SÉRGIO HADDADAnos 1960, casa de André Franco Montoro: como aluno do ensino médio do colégio Santa Cruz, fui convidado para uma reunião sobre Paulo Freire coordenada pelo professor Flávio Di Giorgi. Falamos sobre educação libertadora, analfabetismo, diálogo como método pedagógico, relação horizontal entre professor e aluno e conscientização. Ainda não tinha a dimensão da importância daquelas ideias para a minha vida. Mesmo assim, senti um encantamento.
Final dos anos 60, anos de chumbo: retorno ao mesmo colégio como professor e, mais tarde, como coordenador de um curso popular noturno para trabalhadores jovens e adultos. O curso se apresentou como uma oportunidade para vivenciar o que havia escutado anos atrás, agora em um cenário político de autoritarismo e ausência de diálogo.
Com uma equipe de professores, pudemos comprovar a força do pensamento de Paulo Freire. Eram ideias simples: dialogar sobre os problemas do cotidiano a partir do conhecimento que cada um trazia; ir atrás das raízes destes problemas; construir alternativas para superá-los; e buscar soluções individuais e coletivas de curto prazo e as de longo prazo.
Tudo isso chamávamos de conscientização, o que significava descolonizar o pensamento, enxergar a realidade com clareza, superar os problemas a partir da análise sobre suas causas, dialogar para buscar soluções e agir para mudar a realidade de acordo com os interesses do coletivo.
Como resultado, nossos alunos contavam que haviam perdido o medo de falar para defender suas ideias, que aprenderam a argumentar com seus patrões, que não aceitavam mais piadas racistas ou de quem os diminuía por sua condição social, que não permitiam a violência dos seus namorados e maridos, que não precisavam mais bater nos seus filhos para educá-los e que começavam a se organizar de maneira coletiva.
Aquele pequeno universo escolar de aprender e ensinar para atuar sobre o cotidiano conviveu com o grande universo da sociedade brasileira de aprender e ensinar para agir nos movimentos contra a carestia, pela anistia daqueles que foram obrigados a partir por pensar diferente dos que estavam no poder, nas grandes manifestações por eleições diretas.
Anos depois, voltei a me encontrar com Paulo Freire, agora como colegas professores na PUC-SP. Comentando a importância de descolonizar o pensamento, contou-me histórias que se passaram com ele, mestre do pensar crítico.
Paulo morou em Genebra durante seu exílio político. Procurava ser o mais genuíno nordestino nos seus hábitos para resistir ao modo de vida daquela cidade de primeiro mundo. Mesmo assim, nos primeiros dias, impressionado com a limpeza da cidade, comentou, rindo, que se pegou com medo de sujar o corrimão de uma das pontes, de tanto que ele brilhava.
Mas o mais incrível, continuou, foi que durante os anos em que trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas, saía sempre no mesmo horário, tomava o ônibus que passava no ponto em frente da entrada do edifício religiosamente na mesma hora, descia quatro paradas à frente, tomava outro ônibus dois minutos depois e, finalmente, chegava em casa, sempre no mesmo horário. Um dia o primeiro ônibus se atrasou, ele perdeu o segundo e chegou 10 minutos atrasado em casa.
"O pior, Sérgio, é que eu fiquei indignado! Foi aí que eu pensei que já estava na hora de voltar ao Brasil".
Hoje, como educadores e educadoras, andamos enredados com ideias sobre ranqueamento de escolas e alunos, avaliações de todos os tipos, nacionalização de modelos internacionais, padronização dos conteúdos, sistemas apostilados, tecnologias pedagógicas, ensino à distância, tablets, multimídias, lousas eletrônicas etc. Que falta nos faz a poesia de Paulo Freire que nos ensinou a sonhar que é possível aprender com a própria vida!
Folha de S.Paulo, 27/1/2013

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