05 de setembro de 2013 | 2h 06
Eugênio Bucci * - O Estado de S.Paulo
Os deputados que mantiveram o mandato de Natan Donadon, na semana passada, deram um tapa na cara das manifestações de rua que desde junho exigem ética e transparência na política. Muitos deles se sentem incólumes, inatingíveis, senhores de suas prerrogativas. Se você for reclamar, corre o risco de ser xingado de moralista. Na melhor das hipóteses, desfecharam uma temeridade. Na pior, vem aí um troco das ruas que não terá a menor graça.
Por mais que tenha rendido páginas e mais páginas de jornais, o assunto ainda merece um pouco mais de atenção. Não nos esqueçamos dos acontecimentos fatídicos. Nada menos que 131 votaram contra a perda do mandato, afrontando a lei e o Supremo Tribunal Federal (STF). Outros 233 votaram pela cassação, é verdade, mas o placar não foi suficiente - para que Natan Donadon, deputado eleito por Rondônia e hoje sem partido, perdesse o seu mandato seria necessário um total de 257 votos. Como faltaram 24 votos, ele se safou. E como todos se esconderam atrás do voto secreto, jamais saberemos exatamente quais deles sufragaram pela salvação do parlamentar presidiário.
Agindo nas sombras, suas excelências se sentiram à vontade para agir mal. Com a identidade oculta, os votantes pró-Donadon comportaram-se como os manifestantes violentos que, nos protestos, escondem o rosto atrás de balaclavas para quebrar agências bancárias e lojas de automóveis. Como se usassem máscaras no plenário, fizeram o que não teriam coragem de perpetrar de cara limpa. Isso sem falar nos que foram até lá, registraram presença e depois se esvaíram de mansinho, em abstenção à francesa. Estes foram cúmplices: não depredaram a imagem da instituição com as próprias mãos, mas contribuíram ativamente para o resultado afrontoso.
A comparação entre os maus parlamentares "mascarados" e os arruaceiros das passeatas não é meramente anedótica. No sentido simbólico, suas excelências "botaram para quebrar": agrediram a instituição a que pertencem e, em certa medida, foram ainda mais violentos que os Black Blocs, deixando um rastro de estragos que ficarão aí por um bom (ou mau) tempo. Tripudiaram sobre os manifestantes, num rompante desajuizado que, além de provocar o povo com vara curta, tem um quê de suicídio institucional. Mal dá para crer. Se a Câmara dos Deputados fosse uma pessoa, um ser humano de carne e osso, seria o caso de dizer que endoidou de vez.
Na segunda-feira, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, em atendimento a um pedido do PSDB, suspendeu a sessão que absolveu Donadon. A anulação, que ainda será reexaminada pela Corte, tem uma fundamentação jurídica, no mínimo, controversa, mas veio acompanhada de uma justificativa que não pode ser menosprezada: "A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário".
Agora, é bem pouco razoável supor que a Câmara, em seu delírio "egóico", saberá corrigir o desastre. Na terça-feira, em deliberação apressada, a Casa extinguiu o expediente do voto secreto (numa decisão que deverá ainda ir ao Senado), mas isso não a desculpa. "O constrangimento" de que fala o ministro Luís Roberto Barroso permanece e pode ainda enfurecer novas manifestações.
Um "complexo de superioridade" acomete expressivo grupo de deputados, que se imaginam acima do bem e do mal. Isso talvez explique um pouco mais a descomunal inversão de valores que anda em marcha na nossa cultura política. Desde que as manifestações eclodiram, em junho, outros sinais de indiferença, de prepotência e de arrogância já haviam sido emitidos pelos palácios. Agora vem esse discurso, que ganha corpo há vários meses, pelo qual certos políticos resolveram combater o que chamam de "moralismo". O cacoete alastrou-se pelos gabinetes do poder como uma epidemia vernacular altamente contagiosa. Se alguém reclama de uma autoridade, ela rapidamente responde, ou manda responder, por meio de um xingamento: em lugar de esclarecer o que foi criticado, apenas diz que o crítico não passa de um moralista. Assim é fácil. E, assim, fácil, esse discurso pretende desqualificar qualquer divergência.
Moral da história: se o cidadão discorda do desperdício do dinheiro público, é chamado de "moralista". Ou, então, de "udenista" (como se a UDN nunca tivesse passado de uma liga histérica em prol do puritanismo). Fazendo ar de indefesas, essas autoridades posam de vítimas de um avassalador assédio moral da opinião pública (como se o cidadão, que é o lado mais fraco, pudesse assediar moralmente o Estado, que é, por definição, mais forte). Olham para as câmeras de TV com olhos queixosos, como se fossem mártires de brutais preconceitos obscurantistas da classe média moralista.
Segundo essa nova encenação dos que se consideram acima da lei, qualquer indignação moral é sintoma de moralismo criminoso, tão nefasto quanto a xenofobia, a homofobia e o racismo. A partir dessa premissa, pedir que o deputado diga se votou contra ou a favor da cassação do mandato de Donadon se converte numa pressão inadmissível contra a sacrossanta consciência do representante do povo.
Em sua fantasia de infalibilidade regimental, os maus políticos, que se ocultaram no expediente do voto secreto, agora se protegem nesse discurso que se pretende antimoralista. Querem deixar as ruas gritando sozinhas, querem fustigá-las ainda mais, e, de quebra, querem que a Nação os reverencie como heróis da guerra santa contra o "obscurantismo" de quem só pede um pouco de ética. Com seu pragmatismo esperto e oportunista, eles são, na verdade, os imoralistas do pesadelo presente. Entram no plenário e agridem a democracia sem mostrar a cara. Quando se lembram das ruas, se é que se lembram, não estão nem aí. As ruas? Ora, as ruas... As ruas que se lasquem.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.
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