Se o mundo não é mais perigoso do que já foi, por que supervisionamos nossas crianças o tempo todo?
Grosso modo, dos sete aos 12 anos, eu ia para escola sozinho, de "tramway". Pegava o bondinho a três quadras de casa, e a escola era a segunda parada: digamos que o conjunto levasse meia hora.
A volta da escola era a pé, com os amigos, brincando e conversando. Não levava menos de uma hora; eu chegava sempre atrasado para o almoço, mas isso era tolerado. Nos dias em que a escola se estendia até a tarde, a volta era mais longa: parávamos para brincar nas quadras de escombros dos bombardeios de 1943.
Eram lugares proibidos e perigosos; havia bombas não explodidas (é o que diziam), estruturas periclitantes e ratos, muitos ratos. Duvido que meus pais não soubessem: afinal, a cidade não tinha recuperado seus parquinhos e gramados --no lugar desses, havia os escombros. Nestes dias, então, a volta durava duas horas.
Uma vez em casa, eu me instalava à minha mesa de trabalho e estudava, direto, até o jantar. Claro, havia adultos no apartamento, mas, até o fim do dia, ninguém sequer entrava no meu quarto, nunca --ninguém, por exemplo, tentava saber o que eu estava lendo. Só na hora do jantar, minha mãe aparecia para verificar (por cima) se eu tinha terminado meus deveres. Eu ficava portanto sem adultos entre quatro e seis horas, a cada tarde.
No sábado, a partir dos oito anos, eu saía depois do almoço e voltava à noite --ia para o cineclube da escola, onde ficava por duas sessões seguidas.
Conclusão, eu ficava sem supervisão adulta sete horas por dia: uma média baixa, pois a maioria dos meus colegas dispunha do domingo (que eu passava obrigatoriamente com meus pais).
Claro, a diferença cultural entre Europa e Brasil se reflete na maneira de criar os filhos: na Europa, de qualquer criança, espera-se que, na medida do possível e antes de mais nada, ela "se vire". Mas, além dessa diferença cultural, os tempos mudaram.
Num artigo na revista "The Atlantic" de abril, Hanna Rosin lembra que, nos EUA, em 1971, 80% das crianças de oito anos iam para escola sozinhos. Em 1990, só 9% pareciam ser considerados capazes dessa "ousadia". Não temos os números de hoje, mas, se a tendência tiver continuado, não deve haver mais ninguém ou quase.
Agora, olhe ao seu redor e faça a conta: seus filhos, enteados, sobrinhos, quanto tempo eles passam efetivamente sem a supervisão de um adulto? Na classe média, entre motoristas, babás, professores particulares, repetidores, terapeutas, ortodontistas e bedéis onipresentes nos recreios, será que esse tempo existe?
A resposta tradicional a essa observação é que o mundo se tornou mais perigoso: haveria mais adultos mal intencionados, mais riscos --é preciso proteger as crianças. Pois é, Rosin lembra que, neste tempo, a taxa de acidentes sofridos por crianças não mudou.
Ou seja, o aumento do tempo de supervisão adulta e as novas regras de segurança (formais ou caseiras --nos equipamentos dos parquinhos, nas escolas, em casa etc.) certamente salvaram algumas vidas, mas não alteraram a estatística.
O que aumentou neste período, segundo Rosin, não foi a segurança, mas as fobias das crianças, que ficaram com medo dos comportamentos que lhes foram proibidos. Ou seja, as crianças não podem mais subir numa árvore; o número de acidentes em que uma criança cai de uma árvore não muda, mas aumenta o número de crianças que tem medo de alturas.
Não encorajo ninguém a, de repente, autorizar suas crianças a circular sozinhas e se aventurar por penhascos. Provavelmente, elas não saberiam o que fazer com essa liberdade inesperada.
Mas vale a pena se perguntar: se o mundo não é mais perigoso do que já foi, o que aconteceu? Por que nos tornamos supervisores compulsivos de nossas crianças?
Pois bem, o mundo não é mais hostil do que já foi, mas nossa confiança nele diminuiu, e talvez compensemos nossa falta de confiança protegendo nossas crianças da hostilidade que nós enxergamos no mundo.
Nota: como era previsível, proteger excessivamente nossas crianças as torna mais desconfiadas --não mais seguras. Se quiséssemos que nossas crianças fossem confiantes, seria preciso que elas fossem mais autônomas.
Regra sobre a qual valeria a pena voltar: a autonomia produz confiança, a proteção, ao contrário, produz insegurança.
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