- O ESTADO DE S.PAULO
30 Setembro 2014
Os Estados Unidos não têm ministério da cultura. E a cultura americana está entre as maiores exportações daquele país. Lá a cultura está vinculada ao comércio, aos produtos. Da Coca-Cola ao pintor Rauschenberg, seus símbolos estão em todo o mundo. Iludem-se aqueles que pensam que, numa sociedade mercantilista, livros, filmes, discos, etc., têm circulação graças (apenas) ao seu valor artístico. Vejam os livros How America Stole the Idea of Modernism (Serge Guilbaut), explicando como os Estados Unidos tomaram o lugar da França culturalmente depois da 2.ª Guerra, e Quem Pagou a Conta? (Frances Saunders), no qual se analisa a intervenção do Departamento de Estado e da CIA na Bienal de Veneza e a criação de uma "Otan cultural" durante a guerra fria. Assim acabam com nossa ingenuidade neste assunto.
Portanto, a menos que se tenha uma ideia de cultura que extrapole o nicho do Ministério da Cultura, não se entenderá histórica, antropológica e sociologicamente o que a cultura pode significar num país. No Brasil, estima-se que pelo menos 10 milhões de pessoas trabalhem na área da cultura. São formadores de opinião. É um contingente capaz de mudar qualquer eleição. Isso equivale à população da Suécia. Perto desse número a quantidade de operários em nossa indústria automobilística é ridícula. E, no entanto, não só aqueles 10 milhões produzem cultura. Os 202 milhões de brasileiros são produtores (inconscientes) de cultura.
É disso que se trata quando se pensa num plano cultural para o País e quando se fala de "um novo conceito de cultura". Consumidores e produtores se confundem. E mais: "cultura" não é só o que sabidamente se chama de cultura. Temos de redefinir essa palavra. Recentemente, descobriu-se que a "periferia" tem uma cultura própria. Descobriu-se que "centro" e "periferia" têm de ser redefinidos. Cultura é tanto a "dança do passinho" quanto um concerto sinfônico. E mais: o "tráfico" e as "milícias" são uma maneira de nossa cultura se manifestar. Em outros termos: nossos hábitos alimentares são cultura - e temos de estudar isso. Apoderar-se de papel higiênico e das tramelas nos banheiros dos aeroportos, assaltar e depredar as residências do programa Minha Casa, Minha Vida são também gestos culturais. Deixar as casas e os apartamentos no reboco e cuidar apenas da parte interna da residência, isso é algo que encontramos tanto aqui quanto no Egito, e é igualmente um sintoma cultural. Ultrapassar pela pista de acostamento é um gesto cultural tanto quando clonar placas de automóveis.
Conhece-se um país pelo lixo que produz. Lixo é cultura. Ler o lixo, interpretar o lixo, compreender o desperdício e os que vivem nos lixões. Por que o dinheiro do governo não chega ao ponto extremo destinado? Entender isso é entender nossa cultura. Por que somos incapazes de follow up, de continuidade? Por que não completamos as jogadas? Por que destruímos a arquitetura colonial e enfeamos nossas cidades com monstrengos arquitetônicos? Igualmente, a noção de que aquilo que é "público" é algo que não tem dono e pode ser surrupiado é um danoso dado cultural.
Setorialmente, será preciso integrar mais o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Cultura (MinC). Se fosse uma secretaria do MEC, o MinC teria hoje uns R$ 10 bilhões de orçamento. No entanto, tem só cerca de R$ 2 bilhões, aproximadamente 0,128% do Orçamento da União. E há dez anos arrasta-se no Congresso Nacional um projeto medíocre (e revolucionário) que prevê 2% para o MinC, mas em quatro anos.
A solução, então, é acabar com o MinC? Nunca. A melhor solução é, para começar, quadruplicar o orçamento do MinC - 90% do problemas, do patrimônio histórico à política do livro, seriam resolvidos com essa medida. A Lei Rouanet tem de ser melhorada e os empresários têm de botar dinheiro - o dinheiro deles, e não o do governo - na cultura. Como disse alguém, se você acha que a educação é cara, experimente a ignorância.
Além de uma associação permanente com o MEC, é urgente entender que a cultura atravessa todos os ministérios e as ações culturais devem ser desencadeadas tanto nos quartéis, com o apoio da Forças Armadas, quanto nas cadeias, com participação do Ministério da Justiça. Igualmente os "agentes de saúde" do Ministério da Saúde seriam convertidos em "agentes da cultura" - assim saúde e cultura se dariam as mãos e o Plano Nacional do Livro e da Leitura seria mais impactante.
O Brasil, além de descobrir um novo conceito de cultura, precisa descobrir o mundo. Só o provinciano olha o mundo a partir de seu umbigo. É sintomático que digamos "lá fora" quando nos referimos ao exterior. Estamos "por fora". Por isso o livreiro de La Hune, em Paris, quando lhe cobrei a ausência de autores brasileiros nas estantes, me disse, seguro: "Vocês não têm autores suficientes para uma estante". Enfim, qual o nosso projeto internacional?
Nessa linha, nunca demos a devida importância à Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP), apesar de sermos a quinta língua mais falada no mundo. Por que não temos uma televisão multilíngue que sirva como exportação de nossa cultura? Por que deixamos desamparados os "leitorados" no exterior? Por que não modificamos a lei de depósito legal e não mandamos para os carentes países africanos da CPLP cópia dos 50 mil livros que publicamos anualmente.
Termino com uma parábola verdadeira: o marechal Rondon saiu colocando postes de telégrafo com fio pelo País. Quando fincou o último poste na fronteira da Bolívia, recebeu a notícia de que Marconi havia acabado de descobrir o telégrafo sem fio.
O que isso tem que ver com os iPhones e iPads - verdadeiras bibliotecas virtuais que poderiam suprir o que não fizemos em 500 anos?
Há países que têm petróleo e são pobres. Há países que não têm petróleo e são ricos. A cultura é o nosso pré-sal. E ela não está a milhares de metros abaixo do solo, basta abrir os olhos, ver. E fazer.
*Affonso Romano de Sant'Anna é escritor
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