8 de março de 2013

A rotina da violência contra as mulheres


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RIO — Para se proteger da fúria do companheiro, que empunhava um facão para marcar o seu rosto, Z. pôs o braço esquerdo na frente e, num único golpe, o agressor arrancou seu antebraço. Ela sobreviveu e, felizmente, não engrossou as estatísticas do número de mulheres assassinadas por maridos, companheiros ou namorados. Segundo o , Mapa da Violencia 2012 CEBELA e FLACSO e o Ministerio da Justiça, no município do Rio, ocorreram 5,2 assassinatos para cada grupo de 100 mil mulheres. A capital ocupa o 19º lugar no ranking da violência contra o sexo feminino. A média nacional é de 4,4 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres.
As agressões físicas e o estupro estão também na rotina de adolescentes no Estado do Rio. Em janeiro do ano passado, aos 14 anos, X. foi violentada pelo próprio padrasto ao chegar em casa. Desempregado, ele convertia em cachaça os trocados que recebia fazendo biscates e, numa tarde, avançou sobre a enteada. O drama de X. virou estatística do Instituto de Segurança Pública, que contabilizou ano passado 6.029 estupros no estado, 23,7% a mais do que o registrado em 2011: 4.871. Por trás dos números, histórias de medo e humilhação. Os dados revelam que, a cada dia de 2012, 16 pessoas foram estupradas no estado. A situação é ainda mais perversa no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A região, que faz parte da 20ª Área Integrada de Segurança, ocupa há três anos o topo do ranking de registros em números absolutos desse tipo de crime. No Dia Internacional da Mulher, que se comemora hoje, essas estatísticas revelam que muito ainda precisa ser melhorado.
No mês em que X. foi atacada pelo padrasto, outras 52 mulheres relataram à polícia ter sofrido violência sexual na localidade. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, os 653 estupros registrados ano passado nos três municípios que compõem a 20ª AISP — Nilópolis, Mesquita e Nova Iguaçu — representam pouco mais de 10% de todos os casos notificados no estado. Neste universo, o bairro da Posse contabilizou 292 casos, o que representa 44% do total da região.
Violência também na classe média
A adolescente X. não sabia que a própria mãe já havia sido violentada pelo companheiro. E, apesar disso, ela não acreditou na filha e ainda ameaçou expulsá-la de casa, se ela denunciasse o padrasto à polícia. A mulher só mudou de opinião ao descobrir que a filha contraíra uma doença venérea após o estupro. O agressor desconfiou que seria denunciado e, antes de fugir, espancou e violentou de novo a mãe e a filha.
Tamanha violência não é fato isolado. O Dossiê Mulher 2012 — estudo elaborado pelo ISP com base em estatísticas de violência praticada contra mulheres entre os anos de 2010 e 2011 — mostra 82,6% das vítimas de estupro são mulheres. Entre elas, 24,1% eram meninas, com até 9 anos de idade. Na faixa de 10 a 14 anos, o percentual chegou a 29,5%. Coordenadora da pesquisa, a analista do ISP Andréia Soares ressalta que a soma dos dois percentuais mostra que mais da metade das vítimas deste tipo de crime, em 2011, eram crianças e adolescentes (53,6%).
Diretora-executiva da ONG Cepia, Leila Linhares Barsted diz que, além do trauma, a maior parte das vítimas acaba convivendo com o agressor por causa da dependência financeira. Entre as vítimas que recorreram à polícia, em 2011, 50,2% conheciam os acusados. Destes, 30,5% tinham relação de parentesco com a vítima. Não há uma pesquisa sobre o perfil do estuprador, mas é possível dizer que a maioria apresenta histórico de problemas com drogas ilícitas ou álcool, tem baixa escolaridade e vive de biscates.
A violência contra a mulher também não escolhe classe social. A prova disso é que, de acordo com os casos que chegam ao Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga (Ceam), da prefeitura do Rio, cresce o número de mulheres de classe média vítimas da violência doméstica. Segundo a secretária municipal Especial de Políticas para as Mulheres, Ana Rocha, as mulheres estão denunciando mais porque estão mais bem informadas:
— A Lei Maria da Penha proporcionou essa divulgação. Elas têm maior consciência da importância de denunciar porque, a partir daí, há o enfrentamento concreto contra a violência. A denúncia pode ser anônima, sem expô-las.
A psicóloga do Ceam Flávia Yamada acha que a procura vem aumentando porque as mulheres estão deixando de banalizar a violência que sofrem, mas ainda há subnotificações. Outro mito que cai, no município, é o de que a mulher aceita a violência e não denuncia o companheiro, por depender dele financeiramente. A assistente social do centro, Sara Tavares, diz que a maioria delas tem fonte de renda e muitas vezes é provedora da casa. O grupo atende em média 30 mulheres por mês.
— Empresárias, advogadas, que conhecem seus direitos, têm nos procurado. O nosso papel é prepará-las psicologicamente e dar orientação jurídica, independente do registro na polícia — esclareceu Sara Tavares.
“Ele ficou enfurecido e me mordeu”
A violência dentro de casa surpreende. A empresária Y. de 48 anos resolveu dar um basta na relação de um ano e seis meses com o companheiro, depois de ser espancada, ficar em cárcere privado dentro de seu próprio quarto e ser ameaçada de morte:
— Estávamos deitados e eu comecei a acariciá-lo, mas ele gritou que tinha nojo de mim e mandou eu parar. Logo depois ele tentou ter relações sexuais comigo. Disse a ele que não poderia ter relações com quem sente nojo de mim. Ele ficou enfurecido, rasgou a minha lingerie, me socou, chutou as minhas costas. Me mordeu com raiva, como se eu fosse um bicho. Depois me trancou no quarto por um dia, sem água e comida. Eu gritava por socorro e ninguém me ajudava. Essa é uma luta individual. Eu dormia com o inimigo e não sabia.
Já para a representante de vendas W. de 32 anos, a gota d’água foi quando encontrou cocaína no quarto da filha de dois meses, escondida lá pelo companheiro, um jogador de futebol. Antes disso, ela foi espancada quando estava com sete meses de gravidez e as surras se repetiram até na frente dos amigos.
— Precisamos perder o medo e denunciar.



Na Casa da Mulher Carioca, o resgate da autoestima

RIO — Com as iniciais do companheiro marcadas a ferro quente no rosto, prática comum no gado, uma mulher vítima da violência veio buscar os conselhos da psicóloga e professora Ana Rocha, para saber de que forma se livraria das sessões de maus tratos. Embora o fato tenha ocorrido em meados da década de 80, a imagem não saiu da lembrança da educadora que, atualmente, ocupa o cargo de secretária municipal Especial de Políticas para as Mulheres, criado há três meses. Nesta sexta-feira, Dia Internacional da Mulher, sua pasta além de formalizar a criação do Ceam, implanta o projeto Casa da Mulher Carioca, espaço que visa ao resgate e fortalecimento da cidadania e autoestima das mulheres.
A primeira Casa da Mulher Carioca — estão previstas sete até o fim do ano — será em Realengo, na Zona Oeste, área onde há mais casos de agressões contra mulheres, de acordo com a secretaria. O aumento de 13% das chamadas pelo número 180 da Central de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República para denunciar casos de violência, nos anos de 2011 e 2012, revela que o problema está longe do fim. Daí a importância em amplar os meios de aproximação com as mulheres, a fim de conscientizá-las sobre seus direitos:
— Não podemos nos esquecer das conquistas alcançadas pelas mulheres nos últimos anos, mas ainda temos que avançar. No mês passado, completamos os 81 anos da conquista do voto feminino, temos a Lei Maria da Penha, com seis anos e meio de vigência, que criou mecanismos para coibir a violência, enquadrando o agressor. Tudo isso, sem dúvidas, são vitórias. Agora é o momento promover políticas públicas para ampliar a participação das mulheres, com melhores salários, compatíveis com os dos homens, e acesso a cargos de chefia — explicou Ana Rocha.
Segundo ela, é preciso reduzir a carga doméstica para a mulher ter tempo de se qualificar melhor, o que não deixa de ser uma violência.
— Hoje em dia, há muitas mulheres que são cuidadoras e provedoras. A dificuldade de entender essa autonomia da mulher, acaba suscitando a violência contra ela, reflexo do machismo como uma forma de resistência — analisou a secretária.
Para as vítimas da violência doméstica, a secretaria dispõe do Centro Especializado de Atendimento à Mulher, que funciona de segunda a sexta, das 9h às 17h, na Rua Benedito Hipólito, 125, na Praça Onze, dentro do Centro de Artes Calouste Gulbenkian; e da Casa de Abrigo, cujo endereço é mantido em segredo para proteção das vítimas. Neste último, com capacidade para 40 mulheres, a vítima pode ficar morando até resolver a situação familiar. Se a mulher precisar de atendimento de emergência, fora do horário de atendimento do Ceam, pode recorrer à Central Judiciária de Abrigamento Provisório da Mulher Vítima de Violência Doméstica (Cejuvida), do Tribunal de Justiça do Rio, na Rua Dom Manuel, s/nº, na Praça XV, aberto de segunda a sexta, das 18h às 11h do dia seguinte e sábados, domingos e feriados, durante 24 horas.
— É importante o acolhimento e a orientação quando a mulher é agredida pelo companheiro. Lá há mulheres com recém-nascidos. Ela fica o tempo que quiser, enquanto a ameaça persistir. No centro especializado, ela tem psicólogas, assistentes sociais e acompanhamento jurídico para ajudar na solução do conflito. Temos que conscientizá-las sobre a importância de denunciar, antes que aconteça o pior. Muitos casos viram “femicídios”, assassinatos de mulheres. É chocante que isso ainda aconteça em pleno século XXI — lamentou Ana Rocha, que também é jornalista e integrante da direção Nacional do PC do B.
A solenidade da criação da sete Casa da Mulher Carioca e do do prêmio Nise da Silveira — renomada médica psiquiatra brasileira, aluna de Carl Jung —, constará em dois decretos que serão assinados pelo prefeito Eduardo Paes, às 11h de hoje no Palácio da Cidade. Oito mulheres que se destacaram nas áreas da cultura, educação e esportes serão agraciadas com o troféu simbolizando uma mandala (diagrama composto de círculos e quadrados concêntricos, que serve como instrumento de meditação). A secretaria disponibiliza o site spmrio.rio@gmail.com, para quem quiser denunciar casos de violência contra a mulher.


TCU constata que rede de assistência a mulheres é insuficiente

BRASÍLIA — O pleno funcionamento da Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, está longe de ser realidade. O Brasil ainda tem poucos centros de referência, abrigos, delegacias, juizados e promotorias especializados no atendimento de casos de violência contra a mulher. Para saber o que foi feito do Pacto Nacional Pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, lançado pelo governo federal em 2007, o Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria na rede de atendimento no país. Técnicos constataram que a lei ainda é letra morta na maior parte do território brasileiro.
A lei determina a criação de juizados especiais, detalha como deve ser o atendimento pela polícia e prevê assistência jurídica e psicológica às mulheres, entre outras medidas. No entanto, o número de centros de referência, destinados a acolher e dar orientação às vítimas, não chega nem a 20% do total idealizado pela Secretaria de Políticas Para as Mulheres. A quantidade de abrigos também é bem inferior ao preconizado pela secretaria: estão em funcionamento apenas 72, enquanto um plano de expansão prevê 680.
O TCU constatou que o número de delegacias especializadas quase dobrou de 2003 a 2011, chegando a 445. Mas a secretaria prevê 1.072. Há 94 juizados e varas especializados, 15% do previsto. O TCU recomendou ao governo que amplie a rede de atendimento.
Em nota, a Secretaria de Políticas Para as Mulheres disse que a rede cresceu 300% entre 2003 e 2012. E que estados e municípios receberam R$ 220 milhões para criar e manter os serviços especializados.




O inimigo sob o mesmo teto: ‘Sabe a escrava Isaura? Era eu’

RIO — Depois de ser espancada pelo namorado no meio da rua, E., de 32 anos, resolveu deixar a casa da família e morar em um centro de acolhida para mulheres em situação de rua e vítimas de violência em São Paulo. Morou no local por dois meses, até reorganizar a vida. Grávida de oito meses do agressor, ela diz que esta foi a primeira e única vez que ele lhe bateu. Ela foi à polícia e o denunciou, mas ele nunca foi preso.
— Ele me bateu na cara e quebrou um galho de árvore na minha coxa no ponto de ônibus. Disse que ia me matar. Eu estava grávida de cinco meses do filho dele. Antes disso, ele roubou meu dinheiro que estava no banco. Consegui na Justiça uma medida que manda ele ficar a pelo menos 300 metros de distância de mim.
Após a agressão, E. terminou o relacionamento, mas o namorado ameaçou a sua família. Foi depois disso que ela resolveu viver um tempo num centro municipal que abriga mulheres vítimas de violência.
— Ele foi à casa da minha mãe, onde eu morava, quando eu não estava. Ameaçou a minha mãe, disse que ia matar a minha família toda.
No centro de acolhida municipal, ela ajudava a limpar o dormitório que dividia com outra mulher e conseguiu fazer cursos oferecidos pela prefeitura a mulheres vítimas de agressão.
O relacionamento com o agressor durou só nove meses. Hoje ela mora com outro namorado e diz que não vai permitir que o ex conheça a filha.
— Ele bateu na mãe da filha dele. Tive sangramento pela surra que ele me deu. Já perdoei, mas os hematomas da alma só Jesus cura.
Rosalina Aparecida Concianni, de 73 anos, também foi vítima de agressão. Mas, diferentemente de E., passou quase dez anos suportando o martírio. Segundo ela, antes do casamento, ele a tratava com todo respeito; era romântico e respeitador. Depois, porém, tudo mudou.
— Sabe a Isaura, a escrava? Era eu. Ele me dava socos no estômago, quebrou meu cóccix, levei pontos no nariz. Ele quebrou meu braço e mesmo assim me fazia passar roupa, lavar, cozinhar. Percebi que o que ele queria era uma pessoa para arrumar a casa e mostrar para a família — conta Rosalina.
De acordo com Rosalina, o marido ameaçava envenená-la caso ela contasse para alguém sobre a violência. Mesmo após uma vizinha presenciar a agressão, Rosalina preferiu não registrar ocorrência contra o marido. Os dois ainda continuaram vivendo juntos por dois anos. Os espancamentos continuaram. Há pouco mais de três anos, Rosalina denunciou o marido, que está respondendo judicialmente pelos crimes.
— Eu não tinha coragem de denunciá-lo. Mas como as agressões era diárias, mudei de ideia. Ele saiu de casa. Mas continua me seguindo. Até me chutou na feira uma vez.

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