8 de março de 2013

Lei Maria da Penha trouxe avanços, mas ainda é um desafio para o Brasil


FORTALEZA — “A violência começou verbalmente. Ele tinha ciúmes do meu passado, me humilhava e era muito controlador. Queria me proibir de tudo, como se eu fosse um objeto dele. Eu já me sentia muito machucada com isso e tudo foi piorando, até que um dia ele me agrediu pra tentar matar mesmo. Isso doeu muito, mas é preciso transformar a dor em luta e buscar os nossos direitos”, desabafa a aposentada F.C.A.O., de 49 anos, vítima de violência doméstica praticada pelo ex-marido.
A agressão foi tão violenta, que hoje ela carrega não só as marcas do sofrimento psicológico, mas também sequelas pelo corpo. Tendo sido asfixiada e torturada com marteladas na cabeça, F.C.A.O. chegou a perder massa cefálica. O episódio lhe rendeu ainda uma diabetes, ocasionada pela alta liberação de adrenalina durante a agressão. Ao procurar ajuda em unidades da rede pública, sentiu-se ainda mais violentada:
— A área de saúde, por exemplo, é lamentável. Tem muita gente despreparada pra lidar com vítima de violência doméstica. Fui super mal atendida pelo médico. No hospital, teve até gente tirando sarro da Lei Maria da Penha. Uma das pessoas que me atenderam falou ‘Ah, vai saber o que ela fez pro marido fazer isso com ela’. É um absurdo. Muita coisa precisa melhorar” — lamenta.
Prestes a completar sete anos de vigência, a Lei Maria da Penha ainda é um desafio para o Brasil no que se refere à sua total implementação. Especialistas e movimentos sociais organizados são unânimes ao reconhecer as mudanças trazidas pela nova legislação, mas o coro é o mesmo quando se trata da necessidade de se avançar nas políticas públicas que visem à proteção das vítimas de violência e, mais ainda, à tão reivindicada igualdade de gênero.
As reclamações de F.C.A.O. se traduzem em um diagnóstico coletivo. Queixas sobre a situação estrutural da rede de enfrentamento à violência são uma constante.
— As delegacias são precárias e muitas vezes a mulher não se sente segura pra fazer a denúncia. Esse primeiro atendimento precisa ser muito cuidadoso e os profissionais têm que ser mais qualificados. É necessário também ampliar a rede, inclusive melhorando a assistência nas cidades do interior — considera Ozaneide de Paula, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). A entidade é uma das representantes da sociedade civil no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).
A reivindicação dela encontra justificativa nos números: para se ter uma ideia, o Brasil tem, por exemplo, 72 casas-abrigo, que são as unidades destinadas ao acolhimento de mulheres ameaçadas de morte. Metade delas fica nas capitais e outra parte em municípios do interior, mas, nas regiões Norte e Nordeste, há estados que não dispõem de nenhum serviço de abrigamento fora da capital. É o caso de Ceará, Amazonas, Amapá, Roraima, Alagoas e Rio Grande do Norte.
A Lei Nº 11.340 determina que as políticas públicas para coibir a violência sejam articuladas de forma conjunta entre União, estados e municípios.
— Em nível federal, o governo tem dado respostas positivas para as demandas, o orçamento vem aumentando, etc. Quando se trata dos níveis municipal e estadual, com raras exceções, tudo deixa mais a desejar. Os gestores não têm dado muita importância à questão da violência doméstica e por isso a gente vê que a rede é falha — avalia Schuma Schumaher, também da AMB.
A secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves, afirma que vem sendo feito um trabalho para melhorar a cobertura no atendimento às vítimas, mas reconhece o problema:
— Há dez anos, quando a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) foi criada, o país tinha 331 serviços. Hoje, são 979, incluindo Delegacias da Mulher e núcleos especializados em delegacias comuns, centros especializados, casas-abrigo, juizados, varas, promotorias de Justiça e defensorias. Apesar disso, é preciso reforçar os serviços, a fim de que estejam disponíveis e em pleno funcionamento para atender as mulheres — afirma.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil teve um acréscimo no registro de assassinatos de mulheres mesmo depois da Lei Maria da Penha. Os últimos números nacionais datam de 2010 e dão conta de 4.465 mortes naquele ano. Em 2007, ano subsequente ao da sanção da nova legislação, por exemplo, foram 3.772. O número coloca o País na 7ª posição no ranking mundial do número de assassinatos de mulheres, segundo pesquisa do Instituto Sangari. Mesmo assim, estudiosos do tema atentam para o cuidado ao analisar as estatísticas.
— Não se pode afirmar que houve aumento dos homicídios de mulheres, pois não havia dados coletados anteriormente. A Lei Maria da Penha veio trazer visibilidade para esse triste comportamento patriarcal da sociedade brasileira e os dados começaram a aparecer — explica a socióloga Eva Blay, da Universidade de São Paulo (USP).


Maria da Penha defende que país invista mais em educação

FORTALEZA — No mundo inteiro as mulheres compartilham experiências de opressão. No Brasil, o caso mais emblemático é o da biofarmacêutica cearense Maria da Penha, que dá nome à Lei Nº 11.340, sancionada em 2006. A história dela chamou atenção depois que o país foi punido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), pela negligência em relação aos crimes praticados contra mulheres. Em 1983, Maria da Penha sofreu duas tentativas de assassinato por parte do então marido e ficou paraplégica. Ele foi condenado a 10 anos de prisão, mas nunca foi preso até o Brasil ser condenado pela OEA.
O histórico de opressão e luta deu a tônica para que ela fundasse, em 2009, o Instituto Maria da Penha, que tem como um dos horizontes a prevenção da violência doméstica.
— O país precisa investir mais na educação. A lei funciona melhor quando existem políticas públicas de apoio a ela, mas a sociedade civil organizada também pode colaborar. É nesse sentido que estamos atuando através de ações em comunidades, empresas, etc — conta.
Hoje o trabalho já ultrapassa as fronteiras do Ceará. Um núcleo instalado em Recife através de uma parceria com uma faculdade local realiza atividades de conscientização na cidade. A estudante de Direito Karane Leite é aluna de um curso que atualmente conta com 40 participantes e discute, dentre outros temas, a Lei Maria da Penha.
— Comecei participando da formação e agora ajudo na coordenação como voluntária. Nós precisamos sensibilizar mais a sociedade para essa temática, inclusive humanizando a abordagem. Tem homens que chegam aqui achando que a lei é contra eles, mas, na verdade, é contra a desigualdade de gênero — declara. A iniciativa é uma parceria com o Consulado dos Estados Unidos em Recife.
Para pesquisadores e profissionais da rede de atendimento à mulher, a falta de prevenção da violência ainda é um dos maiores gargalos.
— É que o Direito avançou muito mais que a educação. É preciso saber evitar o problema — defende Helena Frota, coordenadora do Observatório da Mulher (Observem), da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
O estado registrou no ano passado 197 assassinatos de mulheres.
— Não acredito numa redução das mortes enquanto não tivermos um investimento massivo em educação. Nenhum dos homens que nós interrogamos aqui se reconhece como agressor. Eles acham que a culpa da violência é da própria vítima. É preciso mudar essa mentalidade, e isso só é possível através da conscientização — argumenta a titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza (DDM), Rena Gomes.
Segundo ela, 80% das mulheres assassinadas no Ceará nunca tinham feito denúncias à polícia.
— Esse dado indica que ainda tem gente se resignando diante da violência, por isso é preciso desconstruir essa cultura machista — defende.
É uma exigência da própria Lei Maria da Penha que o poder público se encarregue de promover programas educacionais voltados para o respeito à equidade de gênero. Segundo a secretária nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves, o país tem se preocupado com essa questão.
— Temos campanhas de sensibilização e prevenção, como a ‘Quem ama abraça’, para incentivar a cultura da não violência contra as mulheres — exemplifica.


Relatos de violência contra mulheres cresceram 18% em 2012

BRASÍLIA – Em 2012, os relatos de violência contra as mulheres chegaram a 88.685 registros - ou dez a cada hora - feitos pelo Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM). Em comparação a 2011, houve um crescimento de 18,2% nos relatos de violência, que no ano anterior haviam somado 75.019 registros. Frente a 2006, quando foi criado o Ligue 180, o registro desses casos cresceu sete vezes (foram 12.664 registros de violência em 2006).
De acordo com o levantamento, divulgado nesta sexta-feira, a violência física é reportada em 56% dos casos no ano passado. A violência psicológica foi reportada em 28% das ligações de registro de violência, seguida por violência moral (12%); sexual (2%) e patrimonial (2%). Ainda foram computados 430 casos de cárcere privado – mais de um por dia.
Na metade dos relatos de violência havia risco de morte. Em 39%, de espancamento e em 2% dos relatos de violência, o risco era de estupro. Em 9%, constaram riscos percebidos como transtornos psíquicos, perdas de bem, danos a terceiros, e lesão corporal. Do conjunto de relatos de violência, em 58% é descrita como diária e 21% como semanal.
- Entendemos que a Lei Maria da Penha trouxe a consciência do direito das mulheres a ter uma vida sem violência e vontade, inclusive naquelas pessoas que veem o drama individual das vítimas, a acessar a justiça e os serviços públicos. Hoje, o Ligue 180 é porta de entrada das mulheres para acesso a direitos e serviços de segurança pública, saúde e justiça. Em termos de cidadania, esse é um aspecto crucial para romper o ciclo da violência - avalia a ministra Eleonora Menicucci, da SPM.
Sobre a relação da vítima com o agressor, o levantamento revela que em 70% dos casos reportados em 2012, ele é o companheiro ou cônjuge da vítima. Acrescentando os demais vínculos afetivos, como ex-marido, namorado e ex-namorado, esse dado sobre para 89%. Os 10% restantes mostram que as agressões são cometidos por familiares, parentes, vizinhos, amigos ou desconhecidos da vítima.
Distrito Federal lidera o ranking anual de registros do Ligue 180, com a taxa de 1.473,62 registros para cada 100 mil mulheres. Em seguida, aparece o Pará e a Bahia, com 1.032,25 e 931,57 ligações respectivamente
De 2006 a 2012, o Ligue 180 registrou 3,058 milhões de atendimentos. Segundo a SPM, apenas no ano passado foram 732.468 registros pelo Ligue 180, quinze vezes o que foi registrado em 2006 (46.423). Nesses dados estão incluídos todos os tipos de atendimento. O Ligue 180 orienta as mulheres em situação de violência sobre seus direitos, para “prestar uma escuta e acolhida nessas situações e prestar informações sobre onde podem recorrer caso sofram algum tipo de violência”, segundo a SMP.

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