27 de abril de 2015

"É cuspe e giz", Antonio Gois

27 de abril de 2015
"Professor que voltou à sala de aula após 20 anos revela realidade nua e crua de uma escola estadual", afirma Antonio Gois

Fonte: O Globo (RJ)



“Sou formado em Física, com licenciatura, mas trabalho em outra área. Sempre estudei em colégios e universidades públicas. Percebendo a carência de professores no estado, me inscrevi no cadastro de contratações temporárias. Ano passado tive a oportunidade de lecionar em dois colégios estaduais. Tenho observações a fazer que representam o olhar de um cidadão que deseja cooperar.”
Assim começava um e-mail recebido pela coluna, enviado por um professor que ficou mais de 20 anos afastado da sala de aula. Ele queria contar mais de sua experiência, e marcamos um encontro. Pediu que seu nome, bem como o das escolas onde atuou, não fosse divulgado. O objetivo da publicação de seu relato pessoal aqui não é generalizá-lo, pois é certo que há muitas realidades no ensino público. Mas é uma história, como tantas outras, que merece ser ouvida:
“De início, senti muito entusiasmo. O salário era baixo, mas não estava ali por isso. Já no primeiro encontro com o diretor, me assustei com uma pergunta: ‘o senhor vai mesmo aparecer, não é’? Ele explicou que o último que veio para dar aulas de Física se apresentou no primeiro dia e nunca mais voltou.
“No primeiro contato com o outro professor de Física da escola, perguntei qual o livro utilizado. ‘Nenhum’, respondeu ele, explicando que as obras ficavam guardadas num armário porque os alunos ‘não queriam carregar os livros para casa e não havia como distribuí-los e recolhê-los a cada aula’. Comentei que pretendia preparar uma aula no Power Point, para deixá-la mais dinâmica. Com certa incredulidade, meu colega respondeu: “Se quiser, pode fazer”. Mas o diretor me incentivou. A escola possuía um excelente equipamento de data show, que não era preciso reservar com antecedência, porque poucos usavam.
“Tentei fazer algo diferente, mas fui percebendo que não seria fácil. Vi que, mesmo no ensino médio, os alunos não haviam aprendido conteúdos que já deveriam ter sido ensinados no fundamental. O problema era comum aos colegas de outras matérias. Pedi ao diretor para ver as provas do último professor. As notas, com poucas exceções, variavam de zero a um.
“Ao longo do ano, vi vários alunos em sala usando fones de ouvido, celulares, interrompendo constantemente a lição. Testemunhei até agressões físicas. Sentia que os jovens não me viam como aliado para aprender, mas como um obstáculo a ser superado na obtenção do diploma. Mas como seriam aprovados se nada sabiam e, principalmente, não faziam nenhum esforço para aprender? Se as provas apresentavam resultados tão ruins, os índices de reprovação deveriam ser enormes. Disse ao diretor que não teria condições de aprovar a maior parte da turma. “Pelo amor de Deus, professor, o que será desses alunos?”, respondeu ele.
“Fui percebendo como todos davam um jeitinho de driblar a falta de conhecimento. Notas em trabalhos de pesquisa feitos em poucos dias... Projetos sérios nem pensar, pois eles não queriam se engajar em nada. Os próprios estudantes apontavam a solução: ‘Professor, quando o senhor vai dar um trabalho? Uma coisa pra gente fazer em casa...’
“Aprovação sem mérito desqualifica o diploma. Por outro lado, o diretor tinha razão, reprovar em massa parecia um desastre. Assim, ante a inevitável incapacidade de despertar o interesse dos alunos em aprender com o crivo dos testes, sucumbimos todos.
“Ao entrar, no fim do ano, na sala de professores com um calhamaço de pesquisas sob o braço, encontrei o mesmo professor que me recebera com desconfiança. Sem conseguir disfarçar o sorriso irônico, ele comentou: ‘Viu, professor? Com esta clientela, não adianta: é cuspe e giz!’”

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